Hardcopy de "Primeiros Sabores de Noventa e Nove"Se a coletânea precedente, Catorze Semanas de Colunismo Exacerbado, fechava o ano de 1998, por quê não denominar, a coletânea seguinte, “Primeiros Sabores de Noventa e Nove”? Assim nasceu mais esta compilação de textos: a partir do título.

A dificuldade residia em fixar qual o limite para os “Primeiros Sabores”: iriam até março, maio, ou agosto? Tão logo abandonei a periodicidade semanal e adotei a quinzenal (uma proposta mais meditativa), ficou-me naturalmente sugerida a divisão entre os “Primeiros” e os “Demais Sabores” de 1999: os “Primeiros” iriam até fins de abril (encabeçados pelo texto Céus! Como pudemos acreditar que ganharíamos o disparatado Oscar?), e os “Demais” seguiriam daí em diante.

Eu e Carol na aurora de 1999No que respeita ao conteúdo, pode-se dizer que, dentro do laboratório do meu colunismo, levei a produção semanal de opiniões e de comentários às últimas conseqüências — explorando suas variantes e seus temas à exaustão. De modo que, se houve radicalismos e disparidades na minha produção jornalística, eles estão mais que concentrados nestes “Primeiros Sabores de Noventa e Nove”.

Além disso, poderia acrescentar que a coleção tende a uma visão “literária” do mundo, posto que reduz ou eleva assuntos de origens diversas a um mesmo patamar comum de análise. Como se precisasse nivelar a discussão e suas abordagens, atribuí menor ou maior grau de importância aos mais mundanos temas da vida cultural, intelectual e cotidiana do Brasil. (Mesmo que alguns desses temas não mereçam tal upgrade.)

Vamos a eles.


Reflexões sobre a propalada Guerra dos Sexos (07/01/99)

Revista Veja (6 de janeiro de 1999)

1999. Um novo ano se anunciava e a Veja, provavelmente sem assunto, empurrava mais uma matéria sobre as diferenças e os conflitos entre os sexos. Cansado de ler e reler o mesmo repertório de simplificações e ingenuidades, tomei a reportagem como sugestão e desovei meu protesto contra a iniciativa idiotizante dessa e de outras revistas.

Lamentável como um todo, a enquete procurava mais uma vez incitar o embate — ao invés de esclarecer e justificar os comportamentos que frustram homens e mulheres, educando-os para uma convivência produtiva e harmoniosa com seus parceiros.

Gritei, protestei, esperneei mas não mudei nada, é lógico. Os mesmos aforismos generalizantes, sexistas, continuam a ser impressos e bradados. Ao menos, porém, expus minha visão a respeito, bem como algumas de minhas teorias sobre.


Ruy Castro e a Mistificação do Rock (14/01/99)

Ruy Castro é uma admiração de todos nós. Particularmente por ter revitalizado a Bossa-Nova, o Jazz e Nélson Rodrigues. Como todo grande empreendedor e especialista em tópicos desse porte, tem lá as suas obsessões e os seus sacos de pancada atávicos.

Propus, portanto, no meu escrito, não um ataque ao Ruy Castro pessoa, escritor, estudioso (como imaginou Alberto Dines) — propus, sim, uma reavaliação do seu idealismo e da sua quase inocência com relação aos mecanismos e aos propósitos que movimentam a indústria do entretenimento hoje em dia.

Há muito se foi a apreciação e a consagração puramente meritórias, nas Artes. O Rock e seus roqueiros perceberam isso antes, reinando indefinidamente. That’s all.

Ruy Castro em meio ao seu arquivo

Bolsas sem Valores, Vidas sem Sentido (21/01/99)

Pregão ao vivo (site da BM&F)Intrigado com a lógica das Bolsas, que fazem circular uma infinidade de mercadorias implausíveis, bem como bilhões de dólares por dia que ameaçam e põem abaixo estruturas nacionais e supranacionais, produzi uma meditação approposito desses problemas (antecipando, inclusive, um formato que adotaria em meus artigos quinzenais).

Mais pregão (site da BM&F)Transpus o ambiente do pregão e demonstrei que a mesma frieza e indiferença que regia esse jogo já estava impregnada na cabeça das pessoas — fazendo-as achar que todo e qualquer defeito ético, moral ou pessoal podia ser remediado, em definitivo, por injeções de capital. Roberto Freire, o senador, depois de ler, afirmou: “Achei seu texto muito interessante. Mostra que os fatos não são desencarnados, são frutos de escolhas dos indivíduos e têm conseqüências para todos.”


Philip Roth e a Pastoral Americana (28/01/99)

Philip Roth, o maior escritor do mundo"Pastoral Americana", em edição originalPhilip Roth me apareceu nos cadernos culturais, freqüentemente, como um dos maiores escritores vivos. Assim, tão logo avistei “Pastoral Americana” nas livrarias, meti-me numa empreita de proporções respeitáveis. Afinal, para provar que um escrevinhador é ruim ou medíocre, precisamos de uns quantos argumentos bons que logo saltam nas leituras — enquanto que para provar que um autor é notável, definitivo, precisamos percorrer os tortuosos labirintos da crítica e refutar todas as possíveis objeções com rigor e brilho acima da média.

Para quem havia, em seu currículo, subjugado um Paulo Coelho ou outro, o desafio se apresentava um tanto quanto perigoso. Não obstante, sobrevivi e convenci muita gente boa a comprar e ler Mr. Roth. É mais uma realização de que tenho orgulho, é mais um dragão que venci com galhardia. Acho.


A Gula Portentosa de Luis Fernando Verissimo (03/02/99)

Capa de "O Clube dos Anjos" (em concepção de Victor Burton)Luis Fernando Verissimo em foto para o site da Editora ObjetivaHá anos que não encontrava motivo para acompanhar o Verissimo na sua coluna dominical no Estadão. Ele tinha me parecido brutalmente interessante, na pós-adolescência; no entanto, acabou não resistindo ao confronto com outros periodistas e imortais da nossa Literatura.

Caí, então, na de gula de “Clube dos Anjos” por causa de uma certa curiosidade com relação aos “plenos pecados”, e porque o Verissimo retornava ao romance depois de longa data.

Não me decepcionei, pelo contrário, surpreendi-me deveras. Descobri um thriller empolgante, totalmente à brasileira. O pessoal da Editora Objetiva gostou tanto da minha entusiasmada resenha que a colocou em seu site — a fim de promover o livro, vejam só.


Deus e o Diabo na terra do Banco Central (09/02/99)

Armínio Fraga desembarcando no Brasil (Agência Estado)Francisco Lopes no dia seguinte à sua demissão, alugando sugestivamente "O Advogado do Diabo" (Agência Estado)O troca-troca dos presidentes breves e brevíssimos do Banco Central brasileiro foi um tema que me apareceu na urgência de uma produção semanal. Como já disse ou deixei sugerido em algum lugar, política e economia são assuntos que se impõem pela completa falta de assunto.

Novamente nadei em revistas e mais revistas, anotando cada ponto, cada passagem, cada particularidade. Emergi com a tese de que Gustavo Franco era o oposto de Francisco Lopes, que por sua vez era o oposto de Armínio Fraga. O resultado dessa equação me levou a outros raciocínios que eu classificaria como mirabolantes, mas que mataram a minha sede intelectual hebdomadária. Para não dizer que chutei muito, ataquei o maniqueísmo — sempre em voga nas disputas pelo poder.


A vida é bela ma non troppo (18/02/99)

A Vida é Bela (divulgação)

Roberto Benigni. Nem bem o filme chegou às telas, o lobby já se instalara suntuosamente. “A Vida é Bela” aparecia em todas as publicações de peso, coberto de elogios, meses antes da estréia. Criou-se uma expectativa enorme. Embarcamos inocentes, eu, a Carol e nossos pais, nessa. 

O começo até que foi bem, com aquelas piadinhas meio manjadas, mas toleráveis, algumas até engraçadas. Da metade em diante, entretanto, a projeção foi ficando intragável: aquela falta de imaginação em mais uma vez insistir com os campos de concentração e com os nazistas; aquela pseudo-ingenuidade ao brincar com feridas delicadíssimas (e olha que eu nem sou judeu); aquela redução da Europa e dos europeus a uma pá de clichês americanóides (sendo que o filme era italiano)...

Independentemente da futura querela que se instalaria por conta da concorrência com “Central do Brasil”, não tive como aplaudir “La Vita è Bella”, apesar de reconhecer seus méritos. Olavo de Carvalho me apoiou: “Parabéns pelas suas observações inteligentíssimas a propósito de ‘A Vida é Bela’. Oportuna sobretudo é a menção ao injustamente esquecido Totò. Perto dele qualquer Benigni encolhe como um Eddie Murphy comparado a Jerry Lewis.”


"Wilde" — A Movie of Great Importance (23/02/99)

Wilde em julgamentoWilde foi majoritariamente ignorado por nossos cinéfilos, ficando relegado às salas alternativas de São Paulo. Apesar disso, foi para mim uma das melhores experiências audiovisuais da temporada.

Wilde e BosieAfinal, para um fã de Oscar Wilde, não existe emoção comparável a vê-lo ressuscitado (ainda que scholars não concordem com a reconstituição), vivendo todos aqueles sentimentos e todos aqueles episódios que deixou belamente registrados. Como diriam os afetados, Stephen Fry estava “bárbaro” como protagonista; e não importa mais qual papel ele venha a escolher, será sempre, para mim, eternamente Wilde.

Paguei parte da minha dívida para com o mestre irlandês.


Nos tempos da formosa Tiazinha (02/03/99)

O Carnaval veio, como todo o ano, carregado e preponderante, urgente e degradante, na realidade e na aparência. Concorria com ele, porém, uma tal de Suzana Alves, a vulgarmente consagrada Tiazinha.

O que me motivou a escrever sobre o fenômeno, no entanto, não foi o destaque e a notoriedade alcançados pela moçoila, mas sim as estúpidas considerações e especulações que a “intelligentsia” fez sobre seu chicote, sua máscara e a índole masoquista do brasileiro — como se a personagem nos caracterizasse em termos históricos e sociais.

Aproveitei para externar minhas objeções ao desespero festivo e a falsa alegria dos carnavalescos. Minha amiga jornalista Dani Sandler gostou: “O texto da Tiazinha está perfeito; é uma coisa que eu sempre senti em relação ao Brasil e aos meus amigos e, quando tentava explicar, ninguém entendia.”

Tiazinha assistindo ao desfile de camarote (Playboy)

Rubem Fonseca — o espadachim das letras brasileiras (16/03/99)

Capa de "A Confraria dos Espadas" (por Hélio de Almeida)

Rubem Fonseca, com seus livros que são puro deleite, reaparecia nas estantes por meio de “A Confraria dos Espadas”, abrindo espaço para uma devida homenagem. Não bastasse a minha inclinação pessoal para sua Grande Arte, os novos contos se mostraram eximiamente bem planejados e bem construídos, de uma qualidade constante e, ao que parece, inabalável. Não podia deixar de celebrar esse reencontro com sua pena magistral.

Não acabou aí. Balançou-me o mesmo Rubem, semanas depois, com um telegrama que compensou todos os meus esforços e todas as minhas veleidades de escrevinhador incipiente. “Muito obrigado por suas amáveis palavras”, ele sentenciou e me marcou indelevelmente.


Céus! Como pudemos acreditar que ganharíamos o disparatado Oscar? (23/03/99)

Roberto Benigni babando em cima de seu Oscar

Quem sempre se afirmou entendido na Sétima Arte, sempre esnobou o Oscar. Até que o Brasil entrou na disputa. Aí passaram a acreditar em Papai Noel, em Coelhinho da Páscoa, em ressurreição do Cinema Novo, em redenção dos nossos grandes atores, diretores, cenógrafos, escritores e roteiristas — perante o mundo. Aí virou ridículo.

Não perdoei o fato da maldita estatueta ter se tornado, de repente, tão necessária a ponto de sufocar a nossa identidade e os nossos valores — que são outros. Por que é que o brasileiro só se valoriza quando “faz bonito” lá fora? Por que é que a gente precisa de campeonatos mundiais, de olimpíadas e de recordes de bilheteria — para saber que somos bons e ponto?

Gwyneth Paltrow em lamúrias por seu Oscar

"Ensaio Geral" de Gilberto Gil — um legado para sempre (31/03/99)


Capas dos CDs de "Ensaio Geral"Desde que descobri a MPB e os Baianos que procurei pelos primeiros álbuns de Gilberto Gil. Não havia quase nada “oficial” em Compact Disc, e eu tive de me contentar com os extratos desconjuntados das coletâneas. Então, quando lançaram “Ensaio Geral”, uma caixa com 13 CDs, do primeiro (de 1967) aos takes que deram origem a “Refazenda” (1975), investi com convicção os mais de trezentos reais exigidos.

Capas dos CDs de "Ensaio Geral"Ouvi, ouvi, ouvi — e o texto da semana seguinte materializou-se à minha frente, como numa sessão de psicografia. Foram incontáveis audições atrás das peculiaridades de cada álbum — 90% do que encarei ali era, para mim, uma total novidade. Minha ânsia em querer cristalizar cada pensamento, impressão, idéia era tal que bati meu recorde de tamanho e de densidade — quase certo de que ninguém iria ler.

Dias depois da edição da coluna, surpreendeu-me um mail de Zélia Duncan: “Muito legais as suas considerações sobre a caixa do Gil, dá gosto de ler.” E, na semana seguinte, um outro de Marcelo Fróes, o produtor e realizador do box set: “Belo ensaio, Borges... Obrigado pela força.”


Pelo sangue que jorra nos Bálcãs (08/04/99)

Slobodan Milosevic, o líder soviético (em foto de Dragan Filipovic, Newsweek, abril de 1999)

Um guerra, com "g" maiúsculo, estava estourando e era minha obrigação abordá-la. À medida que tomava contato com o histórico do conflito, através de semanários internacionais, mais se fazia urgente uma manifestação a esse respeito. Poucos assuntos são tão sérios.

Retomei minha verve de repórter, transmitindo ao público os porquês e as conseqüências mais fundamentais do conflito. Retratei igualmente o papel de cada agente principal (vide observações sobre o presidente dos EUA e o líder iugoslavo), aludindo a possíveis desfechos mundialmente trágicos.

Moacir Werneck de Castro, em retribuição, citou-me em sua coluna de 18 de maio de 1999, no Jornal da Tarde.

Bill Clinton, o líder americano (The White House, Newsweek, abril de 1999)

Da lama que sopitta na Câmara Municipal Paulistana (15/04/99)

Wadih Mutran, Vicente Viscome e Brasil Vita, nossos ilustres representantes, se divertem (em foto de Sergio de Castro, Estadão, abril de 1999)

Esse deu trabalho. E que trabalho. Devorei um suplemento especial do Estado de S. Paulo e, com a ajuda de outras investigações na Imprensa, montei um retrato impiedoso e nauseabundo do estado da vereação na Capital.

Inacreditável como os senhores vereadores aprontaram, nesta e em outras gestões municipais. Fiquei tonto com tanta licenciosidade, ilegitimidade, ilegalidade, ilicitude. Depois de conhecer esse mundo, você quase desiste da cidade, quase desiste do país, quase desiste de votar. E pensar que a CPI foi descontinuada com absolvição generalizada...

Não se esqueçam de ler antes das próximas eleições.


A América de Vespucci e o Brasil de Pedr’Álvares — por Eduardo Bueno (21/04/99)

Capa de "Náufragos, Traficantes e Degredados" (por Ana Adams)

Sou um apaixonado pela História do Brasil e esses dois livros, de Bueno, sobre os primórdios do Descobrimento me ensinaram uma porção de coisas que eu quis passar adiante. Ultimamente, relendo meu artigo, pareceu-me excessivamente técnico, carregado e pouco fluido. Foi uma espécie de canto de cisne — pois, àquela altura, a produção semanal de colunas havia me levado às raias do esgotamento físico e mental. Meu amigo de Politécnica, Daniel Petrini, notou isso quase às avessas: “Pelo que percebo em seus textos você está passando por um momento de efervescência, parabéns.”

De qualquer jeito minha idéia foi boa — porque a Veja, ainda outro dia, apareceu com uma matéria que começava exatamente assim: “Quem descobriu o Brasil? Pedro Álvares Cabral não é a resposta certa... Não se trata de um português, mas do espanhol Vicente Yañez Pinzón, em 26 de janeiro de 1500...”

Capa de "A Viagem do Descobrimento" (por Ana Adams)

Bem, deixando de lado as coincidências, foi muito bom tê-los novamente aqui, neste passeio de explicações e esclarecimentos acerca do meu colunismo. Espero sinceramente que continuem a visitar-me, deixando sempre suas impressões sobre o que viram, leram, sentiram. Fico sempre muito grato pela audiência.

Mais uma vez, obrigado.

J. D. Borges

4 de setembro de 1999.

(Esta história continua em Admirável Mundo Tolo.)