Assim Falava Nietzsche(baixe a versão em e-book)

“De todo o escrito só me apraz aquilo que uma pessoa escreveu com seu sangue. Escreva com sangue e aprenderá que o sangue é espírito.

O que escreve em provérbios e com sangue não quer ser lido, mas decorado. Nas montanhas, o caminho mais curto é o que dista de cimo a cimo; mas para tanto é necessário ter pernas altas. As máximas devem ser cumeeiras, e aqueles a quem se fala devem ser homens altos e robustos.

Vós olhais para cima quando quereis elevar-vos. Eu, como me encontro no alto, olho para baixo.”

Poucos escreveram como Nietzsche. E ele sabia disso. No reino da língua alemã, colocava seu “Zaratustra” bem atrás de Goethe e Lutero. Ou talvez até junto deles. (Possivelmente na frente.)

Por menor que tivesse sido o impacto de sua obra na História do Pensamento, Nietzsche já poderia ter sido considerado, em termos literários, um “clássico”.

Mas foi mais.

“A desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequeneza de meus contemporâneos, alcançou sua expressão no fato de que nem me ouviram, nem sequer me viram.”

No anonimato de quem custeava as próprias edições, no descrédito de quem não conseguia ministrar cursos regulares nas universidades, e na solidão de quem derrubava os alicerces morais do homem moderno, Nietzsche acabou por extirpar os resquícios da herança judaico-cristã, enquanto terminava de matar Deus — fazendo nascer a raça do Übermensch, o Overman, o Sobre-Homem, o Além-Homem ou, como dizem, o “Super-Homem”.

Ecce Homo

Filho de um pastor luterano, Friedrich Wilhelm Nietzsche cresceu no seio do sermonário cristão, tendo sido chamado, ainda na infância, de “pequeno ministro”.

Ingressou na universidade com o desejo de formar-se em Teologia e Filologia. Pela fé, estudou profundamente as Sagradas Escrituras, a História e as origens do Cristianismo e do Judaísmo. Combinando isso, a um mergulho nos princípios éticos da Antiguidade, pelos caminhos filológicos da Grécia Antiga, acabou descobrindo a “inversão de valores” que se deu na História da Moral, por conta da religião judaico-cristã — e terminou por perder a mesma fé que motivara esses mesmos estudos.

Schopenhauer

“Sua vida... Clama a cada um de nós: ‘Seja um homem e não me siga — seja você mesmo! seja você mesmo!’”

A revelação se deu também por influência do pessimismo ateísta de Arthur Schopenhauer, antecessor direto de Nietzsche na História da Filosofia. Em seus ataques aos “imperativos categóricos” de Kant, os quais se aproximariam das normas inflexíveis do decálogo bíblico de Moisés, Nietzsche apoiaria-se em Schopenhauer para, mais tarde, afirmar que “regras universais de conduta, como os Dez Mandamentos, só servem para desviar-nos de questões concretas de caráter”.

Perspectivismo

Ao contrário de Immanuel Kant, Nietzsche não acreditava em um “conhecimento absoluto” que transcendesse qualquer perspectiva. Atribui-se a Nietzsche a confirmação de que nenhuma verdade escapa da nossa “perspectiva” subjetiva. Isto é, não há para ele tal coisa como uma “verdade absoluta”, pois quaisquer proposições que venhamos a formular passam inevitavelmente por nossa percepção, por nossa compreensão, por nosso “filtro”. Assim, aboliriam-se concepções como a de um “mundo em si”, ou de uma “coisa em si”, ou ainda de uma “verdade em si”.

O Caso Wagner

Nietzsche e Wagner partilharam da mesma admiração por Schopenhauer. O jovem universitário, veio a conhecer o já consagrado compositor, depois de introduzir sua música a Albrecht Ritschl, na época seu professor-orientador. Wagner, admirado pela perspicácia do jovem Nietzsche, quis imediatamente conhecê-lo.

Em seu primeiro livro de ensaios, “Considerações Extemporâneas”, Nietzsche sugere que os dramas de Wagner promoviam uma retomada do espírito que emanava da Tragédia Clássica. Desde “O Nascimento da Tragédia”, seu primeiro trabalho publicado, Nietzsche colocava a Tragédia Grega como a síntese de dois princípios artísticos: a celebração de Apolo e Dionísio. Apolo, como o deus da ordem, da iluminação e da clareza; e Dionísio, como o deus da “dissolução do ser”, da música, dos excessos. Wagner, então, pela reabilitação do espírito trágico, devolveria ao homem europeu o significado da existência, perdido desde da Idade de Ouro dos gregos.

“Considero Wagner o grande benfeitor da minha vida... Eu amei Wagner.”

Contra Wagner

Malgrado especulações mil, Nietzsche desenvolveu uma relação tipicamente “edipiana” para com Wagner. Dividindo sua estima com Cosima Lizst (filha de Franz), primeiro amante depois esposa de Wagner, costumava referir-se a ele como “o Mestre”.

A independência intelectual de Nietzsche, portanto, somente viria quando do rompimento total com Richard Wagner, que ele passaria atacar de Parsifal em diante. Segundo consta, tal ópera promoveria o tipo de sentimentalismo religioso que Nietzsche mais repudiava (bem como uma tendência ao espetáculo, à grandiloqüência, a teatralidade que o filósofo há muito não aprovava).

Para completar, Nietzsche não partilhava do anti-semitismo, nem do nacionalismo, ambos exacerbados em Wagner. (Ainda que tivesse, posteriormente, suas idéias associadas ao Nazismo de Hitler — provavelmente uma obra da divulgação quase panfletária de Elisabeth Nietzsche, irmã do próprio.)

“Wagner repetiu uma mesma proposição durante toda a sua vida: a de que sua música era mais do que simples música... ‘Simples música’ — nenhum músico teria dito isso.”

Por que escrevo livros tão excelentes

“O pensar deveria ser ensinado como se ensina a dança, como um tipo de dança.”

Parece fatal a presença da música na obra de Nietzsche. A musicalidade permeia seu estilo. Estilo que vai perdendo a graça, o vigor e a força, à medida que vai sendo traduzido. Literalmente ou poeticamente traduzido. (Se faltasse a alguém razões para aprender alemão, Nietzsche seria mais que um bom motivo.)

De acordo com seus biógrafos, Nietzsche padecia de fortes dores de cabeça; dores que limitavam sua produção escrita ao intervalo de, no máximo, algumas horas por dia. Daí, acreditam, vem a preferência do filólogo pela escrita em forma de máxima, provérbio ou aforismo. Entende-se também por aí, a aspiração de Nietzsche às alturas do olimpo das Escrituras e dos autores da Roma e da Grécia Antigas.

“É minha ambição dizer em dez frases o que alguém diz em um livro — o que alguém não diz em um livro.”

Ad Hominem

“Eu sou pura dinamite.”

Ao mesmo tempo em que buscava tamanha elevação, Nietzsche recaia em ataques absolutamente pessoais, carregando em tons de zombaria e extravagância. Dizia, por exemplo, que Sócrates não era “confiável”, dada a sua notória “feiúra”. Aparentemente num lance de disparate, queria apenas provar que: — Sócrates não poderia jamais ensinar a virtude pois nunca fora, no seu desleixo pela aparência e pelas coisas do corpo, um exemplo de homem virtuoso.

Nietzsche inaugurou, assim, uma certa onda de “desacato” para com figuras seculares, intocáveis, históricas. A começar pelos três pilares da Tradição Filosófica Ocidental: Sócrates, Platão e Aristóteles — que Nietzsche considerava desgarrados, extraviados, erráticos, verdadeiros retardatários da “Idade de Ouro” da Antiga Grécia.

Voltando a Sócrates, apontava seu “racionalismo extremado” como pernicioso e decadente para a humanidade. Sócrates teria limitado a experiência dionisíaca da Tragédia, tendo com Eurípides enterrado de vez o Teatro Grego Clássico.

Sobrou, claro, para Platão que, junto com Sócrates, tentava explicar o “inexplicável”, tentava entender o “ininteligível”, tentava pôr ordem no caos do “ideário humano”. Nietzsche via grande similitude nas doutrinas platônica e católica, a ponto de afirmar que “o Catolicismo era o próprio Platonismo em versão para as massas” — sempre trocando o “concreto” pelo “abstrato”, sempre trocando o “real” pelo “ideal”, sempre trocando este mundo por um outro, “exterior” a nós. Não à toa, Nietzsche ligava a decadência do Cristianismo a um distanciamento que se desenvolveu entre os seus preceitos (abstratos) e a experiência corpórea (concreta) do homem.

O Anticristo

Nietzsche foi um dedicado estudioso da obra de Ludwig Feuerbach intitulada “A Essência do Cristianismo”. Logo de início, Feuerbach define Deus como a “projeção de características humanas em algo exterior, fora do self”. Protegidos, então, por uma força que sobreleva qualquer ameaça humana ou qualquer força da natureza, os fiéis transfeririam seu poder de decisão, de escolha, de ação para um ser superior — “Todo-Poderoso”. Motivados pelo medo, os mesmos fiéis terminariam por perder seus poderes mais legítimos — bem como a habilidade, a aptidão, o costume em utilizá-los.

Mais adiante, fracos e dependentes, esses mesmos fiéis entenderiam suas experiências pessoais como um reflexo de motivações transcendentais, sobrenaturais, divinas. Algo que obstruiria a visão e a compreensão do “mundo real”, e abriria caminho para a interpretação de que “todo o sofrimento é, na verdade, punição, repreensão, castigo”.

No final, qualquer falta, qualquer escorregão ou erro, por parte dos fiéis, poderia ter efeitos nefastos. Nietzsche, no auge de sua heresia, concluiria que “o pecado não é, no fundo, uma ofensa contra a Humanidade — mas sim uma afronta contra Deus, uma afronta pessoal contra Ele”.

“Em outras eras, blasfemar contra Deus era o maior dos absurdos; porém Deus morreu, e morreram com ele tais blasfêmias.”

Saulo de Tarso

Um dos maiores alvos de Nietzsche em sua cruzada, foi São Paulo apóstolo. Nietzsche o responsabilizaria pela noção de que “Jesus morrera na cruz para expiar os pecados do Mundo” — sedimentando, portanto, a certeza de que “o homem era um ser tão imperfeito, tão incompleto, tão defeituoso, que a única forma de remediar essa nossa ‘natureza maléfica’ seria trazendo Deus à Terra, na forma humana, e torturando-o até a morte.”

O melhor homem jamais nascido: torturado na cruz.

Humano, Demasiado Humano

O Cristianismo veria, enfim, nos nossos apetites mais naturais, a base para infinitas e traiçoeiras tentações. Segundo Nietzsche, os “senhores da moral” viveriam unica e exclusivamente para sentenciar e legislar contra os nossos instintos. Não por acaso, se encontraria em cada um dos “sete pecados capitais” a marca de cada uma das nossas vontades mais naturais e íntimas.

Como a destruição dos instintos implicaria na destruição do próprio ser, Nietzsche concluiria que o Cristianismo tende a alimentar o ódio ao próprio corpo, o ódio a si próprio — e, obviamente, ato contínuo, o ódio ao outro, o ódio ao próximo.

Sombras de Deus

“Acredito que não estamos livres de Deus, pois ainda temos fé na gramática.”

“Se Deus não existe, então tudo é permitido” — é uma frase de Dostoievski, não de Nietzsche. Para Nietzsche, a suposta “permissividade”, após a morte de Deus, não era uma questão fundamental. Sua preocupação se centrava na herança deixada pela moral judaico-cristã. No seu entender, os europeus — muito embora se afirmassem “curados” dos cacoetes do Cristianismo —, continuavam a cultivar velhos hábitos da antiga moral.

Nietzsche estava convencido de que a perda da fé em Deus se converteria numa traumática crise cultural para a humanidade. Os homens — acostumados ao fato de que seus valores vêm exclusivamente Dele —, sem Deus, perderiam o juízo, o senso, a direção, chegando ao cúmulo de duvidar que “novos valores” fossem possíveis.

“Trocamos nossa fé em Deus pela fé na Ciência.”

Se o homem moderno tinha o “materialismo científico” já incorporado à sua condição, com o fim de Deus, viria o “niilismo moderno” e a percepção de que “a vida não tem sentido”. Segundo a Ciência, nossa existência não passaria de mero acidente — seríamos apenas mais um punhado de organismos habitando um planeta qualquer do universo.

“A ruína da interpretação moral do mundo, que não tem mais nenhuma aceitação hoje em dia, a mesma que depois tentou refugiar-se no além, termina em niilismo... A impossibilidade de uma única interpretação do mundo — algo a que se dedicou uma força descomunal — leva à desconfiança de que todas as interpretações do mundo são falsas. Tudo perde o sentido... Estamos cansados porque perdemos a nossa motivação principal. Foi em vão até agora...”

Genealogia da Moral

Eis o estrago provocado por séculos de uma “moral herdada”, ou como definiria Nietzsche, por séculos de uma “moral de escravo”. Tal “moral de escravo” teria suas origens no Lumpenproletariat do Antigo Mundo, o mundo dos hebreus, o mundo dos judeus, o mundo dos primeiros cristãos — ou seja, historicamente, o mundo dos escravos.

Para Nietzsche, esse tipo de moral estava fundada no ressentimento dos “pobres de espírito” que, sentindo-se privados, explorados, oprimidos pelos mais fortes, teriam construído uma ideologia na qual justamente os “perdedores”, os “fracos”, os “falidos” seriam o verdadeiro “povo escolhido”.

Sem lugar para os grandes, os nobres, os sublimes — os “mestres”. Na concepção cristã, a “moral do mestre” era uma ofensa não só a Deus, mas também a seus seguidores mais devotados. Dirigir a própria vida, lutar pelo que se quer, seguir uma ética própria — eis a raiz de todo o mal.

“Apenas os desafortunados são bons; os sofredores, os carentes, os doentes, os feios, apenas eles são dignos de devoção, de piedade, apenas eles são abençoados por Deus... e vocês, os poderosos e ilustres, vocês, ao contrário, são os maus, os cruéis, os devassos, os insaciáveis, os ímpios, os imorais por toda a eternidade, vocês serão os amaldiçoados, os condenados e os danados!”

Der Wille Zur Macht

Enquanto Schopenhauer acreditava na “luta pela vida” e Darwin, na “luta pela sobrevivência”, Nietzsche acreditava na “luta pelo poder” — na “ânsia pelo poder”, na “vontade para o poder” ou, como dizem, na “vontade de potência”.

Nietzsche observava que o homem arrisca tudo — inclusive a própria vida — pelo poder. Afinal, o homem pode estar bem alimentado, o homem pode estar bem abrigado, o homem pode ter inclusive amor — mas se não tiver poder, não estará satisfeito.

Assim, pode-se também entender a reviravolta moral imposta pelos fundadores da religião judaico-cristã como uma reviravolta pela “tomada do poder”. Quando Jesus afirma “meu reino não é deste mundo”, pode-se interpretar a afirmação como um desdém pelo mundo de sua época, como uma condenação ao mundo de sua época — mas, principalmente, como a anunciação, como o prenúncio, como a aurora da “dominação moral” que se estenderia por séculos e séculos.

Zaratustra

Nesse contexto, Nietzsche considerava cabal a troca do dualismo grego “bom versus ruim” pelo dualismo metafísico cristão “bem versus mal” — ainda nos primórdios da religião.

Zoroastro, ou Zaratustra, o grande profeta persa do século VII antes de Cristo, fora o primeiro a solidificar essa concepção “dualística” do universo. Segundo Nietzsche, Zaratustra cometera o erro mais calamitoso de todos os tempos: inventara o Moralismo.

Portanto, ninguém mais habilitado do que o próprio Zoroastro para reconhecer seu erro. Esta é a base de “Assim falava Zaratustra”, obra-prima em que Nietzsche deixa a cargo do sábio persa a missão de transmitir uma mensagem edificante ao homem moderno, perdido em meio a uma grave crise de niilismo.

Übermensch

“Eu lhes anuncio o Super-Homem.”

O Super-Homem representaria, para Nietzsche, a superação do dualismo “bem versus mal”, a superação da “moral do escravo”, a superação do asceticismo — representaria o fim da negação da vida. O Super Homem representaria, para Nietzsche, a reabilitação do espírito dionisíaco, a reabilitação do naturalismo, a reabilitação do amor fati — representaria o começo da reafirmação da vida.

Amor Fati

Pelo estímulo ao amor fati, Nietzsche ansiava promover a aceitação da vida como ela é, a aceitação da realidade como tal, a aceitação dos fatos — o amor ao destino, o amor à própria condição, o amor a si próprio.

Aliado a esse princípio, estaria o de “eterna recorrência”, “eterna retomada”, “eterno retorno”. Se o tempo é cíclico, e não acaba, não tem um “final” — assim também a vida, que deveria ser vivida como uma “sucessão de momentos”, como uma “soma de instantes”, como uma “coleção de eventos” — e não como uma trajetória que deve obrigatoriamente se justificar: almejar, alcançar, atingir um “fim maior”, “específico”.

O Significado da Vida

Assim, o significado da vida, para Nietzsche, estaria no “eterno encantamento pelas coisas da natureza”, pelas coisas naturais, pelas coisas do mundo — este mundo, não “outro mundo”, não um mundo “além daqui” ou “além de nós”.

Para Nietzsche, a contemplação das coisas naturais, enquanto naturais, seria a única fonte de significado para a vida, a única fonte de significado para o viver, a única fonte de significado para o ser.

“Eu próprio ainda não me encontro em meu tempo, alguns nascem póstumos... Algum dia necessitarão de instituições em que se viva e se ensine como eu entendo viver e ensinar; talvez até mesmo sejam instituídas cátedras próprias para a interpretação do meu Zaratustra. Mas seria uma perfeita contradição a mim, se eu esperasse encontrar ouvidos e mãos para as minhas verdades: que hoje não se ouça, que hoje não se saiba tirar nada de mim, não é somente compreensível, parece-me até mesmo justo.”

Assim falava Nietzsche.

Julio Daio Borges