Postmortem

Ele havia morrido.

Estava num tipo de sala de espera. Sentado, sozinho. Pensando...

O lugar não parecia estar em chamas, nem fazia aquele calor incrível — no qual tudo tende a ferver, fumegar. Aquela famosa criatura vermelha do rabo pontudo, com chifres e garfo na mão não lhe fazia companhia. Nenhuma bruxa, nenhum vampiro, lobisomem ou monstro. Como ele não estava sendo torturado, não se sentia deprimido, nem ao menos entediado, concluiu que ali não deveria ser o temível Inferno.

Ao mesmo tempo, não via mulheres bonitas. Nenhuma das top models estava presente, nem a Marilyn Monroe. Nem ao menos aquela vizinha sinuosa do trezentos e dois. Ninguém. Banquetes? Caviar? Big Mac? Nada. Nenhum eunuco para abaná-lo. Nenhum gênio da lâmpada para dizer-lhe que o seu desejo era uma ordem. Nenhuma paisagem, praia, lago, cachoeira ou piscina. Lá, definitivamente, não se parecia com o Havaí, nem com a Riviera Francesa, a Califórnia, a Suíça ou qualquer outro paraíso terrestre. É; ali também não era o tão sonhado Céu.

Purgatório? Foi quando chamaram-no.

Comunicaram-lhe, então, que deveria escolher entre três opções.

A primeira consistia em assistir ao que parecia ser o videotape de sua vida. Desde o útero até a UTI. Munido de papel, lápis e borracha, anotaria cada um dos sete mil erros que cometera. Depois, deveria identificar os dez mais graves e classificá-los por ordem decrescente de malevolência, de acordo com aquele afamado conjunto de leis: Os Dez Mandamentos.

Por exemplo: em primeiro lugar um homicídio; em segundo uma infidelidade conjugal; em terceiro lugar uma mentira sem consequências graves — e assim por diante. Para isso, teria todo o tempo que quisesse ("Todo o tempo do mundo." — pensou), podendo voltar o videotape e reassistí-lo infinitas vezes. "Infinitas vezes..." Quando acabasse, a lista seria examinada. Se ele tivesse acertado a ordem e tivesse se arrependido sinceramente dos sete mil pecados (condição absolutamente necessária), iria para o Céu. Se errasse... Se não se arrependesse...

A segunda opção consistia em assistir, com "transmissão direta e ao vivo" da Terra, a vida de um parente, amigo ou conhecido (de vista também valia) — aquele que possuísse a ficha mais suja com o Todo-Poderoso. Durante o percurso, apareceriam situações do tipo "Você Decide" — quando ele deveria sugerir o que fazer, a fim de trazer a ovelha desgarrada de volta ao rebanho celestial.

Ele faria algo como o papel do Acaso na vida do parente, amigo ou conhecido. Se o malfeitor fosse de alguma maneira regenerado até o fim de sua vida, iriam ambos para o Céu. Se não...

A terceira consistia em voltar para a Terra e viver outra vez no Passado, no Presente ou no Futuro. Tudo de novo, sem nenhum conhecimento prévio. Ou seja, seria uma nova chance, uma nova oportunidade que poderia (ou não) dar certo, mas em que ele perderia toda a consciência desta vida, a anterior, e com ela as lembranças, as coisas e as pessoas que amou. Ao fim da tal vida hipotética, ele voltaria a este mesmo lugar onde mais uma vez as contas seriam acertadas, sem que pudesse perceber que já havia estado lá, etc.

A primeira opção parecia fácil. Ele já sabia quais eram as suas dez maiores "burradas" ao longo da vida, só precisaria confirmá-las no videotape e classificá-las na tal ordem. Classificá-las...

A Primeira seria ter abandonado a escola na quarta série. Não! Isso era o que sempre lhe tinham dito; não acreditava realmente nisso. Em primeiro lugar viria o casamento com a Dorinha. Nunca ele devia ter se casado; não com o grande amor de sua vida, a grande perdição de sua vida. "Ela vai acabar te matando" — era o que os seus (muy) amigos do clube viviam dizendo. E, ao que parece, Dorinha havia conseguido (ou melhor, eles haviam conseguido).

Mas o casamento fora uma conseqüência, a maior "burrada" havia sido, então, pedir para ser apresentado a ela, "uma deusa de sua época" — lembrou-se. Ela fora mesmo linda...

E os filhos? Nunca deviam tê-los tido. "Nós fomos os piores pais do mundo" — pensou. Quanta irresponsabilidade! Esse fora, sem dúvida, seu maior erro: destruir vidas inocentes, alheias.

Lembrou-se, então, do dia em que conheceu, com Dorinha, aquela engenhoca chamada caça-níqueis... Vieram, depois os cassinos e, então, começaram a perder fortunas. Aquilo, sim, é que era grave!

Pois é, pensando bem, classificar os erros de toda uma vida não era tarefa fácil. Ainda por cima, de acordo com os Dez Mandamentos!

A segunda opção, aquela do Acaso, era algo como um jogo. E de jogo ele entendia. "Sou bom nisso. Um mestre!" — foi o que lhe veio à cabeça. Na verdade, era mestre em perder; embora lhe fosse duro de admitir.

Essa opção não era tão difícil assim, era só analisar cuidadosamente a vida do sujeito, estimar qual decisão acarretaria em quê e pronto! Pronto nada. E se ele tivesse de consertar a vida de algum tarado? E se fosse responsável pelo Michael Jackson? Com um pouco de sorte, talvez ficasse encarregado da consciência de O. J. Simpson. E se tivesse de resolver a vida daquela tia viúva que gostava de "assar" gatinhos no microondas? E quanto ao filho "drogado" do zelador? E o Português do bar que batia na mulher sempre às terças-feiras? E a jararaca da sua Sogra (que permanecia viva e lúcida)? E a Dorinha?

Sobrava, por exclusão, a terceira opção: viver de novo, born again. Soava agradável. Novas oportunidades... "É disso aí que eu preciso!" — refletiu profundo. Era só não cometer os mesmos erros...

Desta vez, prometeu que fugiria até do jogo de dominó e que casamento só depois dos trinta e cinco; e olhe lá! Agora, parecia tudo mais simples e mais claro; era possível planejar, e até prever.

O que chamavam de "reflexão" — como não havia atinado para isso enquanto estava vivo? Era só ter parado e pensado. Tantas coisas poderiam ter sido evitadas... Ele teria conquistado o Mundo se tivesse ponderado uma única vez, se tivesse feito um esboço dos futuros movimentos. Assim como agora! Viver a vida fora da própria vida parecia bem mais fácil.

E as lembranças? Adeus para sempre. Por água abaixo...

De repente, elas vieram: a mãe dando-lhe sopa em "colheradas aviãozinho"; as pescarias com o pai, aos sábados; o clube do piratas sanguinários na infância; as primeiras Playboys com os primos mais velhos; Telma, a primeira namorada; a paixão por Dorinha; o nascimento dos filhos... Pensando melhor, haviam sido tempos felizes, não dava para jogar tudo na lata do lixo, assim. Achou que não conseguiria, jamais, mandar tudo para o limbo.

As recordações continuaram vindo, aos borbotões. Ele começou a revivê-las uma a uma. Comovido, chorou como uma criança desamparada.

Voltou, então, a pensar na primeira opção; depois na segunda; e, por fim, na terceira.

Novamente não conseguiu escolher nenhuma e, mais uma vez (a terceira vez) voltou à primeira, à segunda e à terceira opções.

Em seguida, repensou tudo uma quarta; uma quinta; uma sexta vez — e assim sucessivamente — até uma enésima vez.

Passou toda a Eternidade em dúvida, revivendo sua vida (e, portanto, sua morte) por incontáveis vezes.

Nunca chegou a perceber o tempo passar e nunca mais soube sobre os vivos de sua época. Navegou solitário por águas conhecidas, sem avistar terra firme; até o fim dos tempos.

Para alguns isso seria o verdadeiro Inferno.

Para outros, o verdadeiro Céu.

J. D. Borges