Mulher indiana cruza rua de casas tombadas, em meio ao centro financeiro de Singapore

Como todo aquele que mergulha na sua ignorância ocidental, eu nunca tive muito respeito pelo Oriente. “Se não conseguiram nos legar nada de relevante, é porque nada têm de imprescindível e de notável”.

Nunca houve tão ledo engano.

O Oriente se mostrou para mim por caminhos muito próprios. E, como sempre faz, se afirmou pela sutileza, pela suavidade — nunca pela força, pela violência apelativa. Essa é a grande experiência que não se consegue transmitir: uma experiência delicada que entra pelos poros e que se instala como certeza plena. Não é algo palpável ou que se possa provar com fatos, fotos e palavras.

O que pretendo aqui é relatar e revelar um apanhado dessa experiência, sem a menor intenção de reproduzi-la neste espaço. Talvez apenas para testemunhar que o Oriente e os orientais têm, sim, algo de muito especial — que merece ser conhecido, cultivado e respeitado.

Sem vergonha ou maior pretensão, posso dizer que eles me conquistaram.


O objetivo ou porquê da saga

Fui parar em Singapore, Cingapura, Singa, graças a um projeto “orçamentário” mundial do banco, ABN AMRO. Como membro participante do processo aqui na América Latina, fui designado para conhecer o modelo lá da Ásia — futuramente adaptando-o e implementando-o de acordo com as nossas necessidades.

Fico nesta abstração pois os detalhes são um tanto quanto complicados. Apenas para esclarecer, a Matriz do banco fica na Holanda, mas os holandeses não tinham como tocar o projeto. Passaram a bola para os asiáticos, e como Singa sedia seu escritório regional (assim como São Paulo, na América Latina), lá fomos nós. 

Only the lonely

Quando digo nós, digo eu. Aliás, este foi um dilema particular desta “viagem de negócios”. Na minha primeira incursão de business, eu partia solitário por três semanas sem conhecer ninguém do outro lado e sem uma idéia clara da tarefa que me aguardava.

ABN AMRO Bank, entrada no OCBC Centre
Eu e o móvel chinês, no Images of Singapore (foto do Manuel) Nesse clima nebuloso, embarquei para uma nova vida, um novo mundo, que iria construir de acordo com a cidade, de acordo com o trabalho, de acordo com a minha rotina diária. Como não havia encontrado uma só pessoa que houvesse estado lá, minhas expectativas estavam cheias de temores pessoais.

Conseguiria me adaptar? Desempenharia o papel que meus chefes esperavam que desempenhasse? Compensaria tão longa ausência? E se eu não conseguisse estabelecer os contatos necessários? E se toda a iniciativa se revelasse um fracasso?

Ia sozinho e não tinha ninguém com quem pudesse dividir a responsabilidade. Era agente, reagente e testemunha. Não podia falhar. Fui.


Primeiras Impressões

Depois de 30 horas de vôos e escalas, cheguei numa terça-feira às duas da tarde. Imenso e vazio, o aeroporto me pareceu colorido e as pessoas muito gentis.

Estranhei o número excessivo de publicações em inglês, numa livraria local, quando descobri que era o idioma oficial deles. Junto com o chinês mandarim, o “tamil” e o malaio.

A esteira 32 do aeroporto, onde minhas malas começaram a rodar

Um taxista bem ao estilo guia turístico me explicava essas coisas, enquanto eu lhe elogiava a cidade tão arborizada, tão verde, tão viva. Disse-me que pretendiam reduzir a poluição e que cobravam pedágio de quem quisesse rodar de carro no centro.

O hotel, muito suntuoso, era o The Oriental, da renomada cadeia Mandarin. Feito o check-in, minhas malas saltaram do porta-malas para o quarto sem que eu pudesse perceber. Fiquei maravilhado.

Entre sonado e derrubado por um fuso-horário de onze horas (a mais), desfiz a mala, programei o cofre e tomei um banho. Preocupado com a minha missão no banco, às quatro da tarde tomei a condução para o escritório.

OCBC Centre East

O OCBC Centre, onde ficava o prédio do ABN AMRO, estava tão quieto e tranqüilo que aquele centro financeiro, um dos maiores da Ásia, me lembrou São Paulo em feriado ou em dia de jogo de futebol. A impressão que deu e que se reafirmou ao longo dos dias é que, em Singapore: quando todos trabalham, todos trabalham; quando todos almoçam, todos almoçam; quando todos viajam, todos viajam. O esquema de produtividade parece sólido e constante; toda a população participa. Sem chance para as dondocas, os playboys e os desocupados de toda sorte. (Não vi nenhum lá.) Quando todos trabalham, todos trabalham.

A Controladoria do escritório regional da Ásia no ABN ficava no oitavo andar. Sem cartão de acesso, pedi ajuda a alguém que chegava e, para sair, contei com a boa vontade de uma pessoa que sentava próxima à porta.

Foram me apresentando a área, as pessoas, as funções de cada um. Todos muito sorridentes, denotando uma certa inocência nos olhos, principalmente os indianos (10% da população).

Conversamos generalidades sobre viagens longas e sobre fuso-horários. Notei que falavam de aviões como falamos de automóveis e que, enquanto rodamos as estradas do Brasil, eles saltam de uma cultura milenar a outra.

Os primeiros a me receber (da esq. para dir.): Davy Goh, Ankur, Manish, Arvind e Shashank

Almoço e Janta

Pra quem diz que em Cingapura come-se mal

No Brasil, antes de ir, todos me gozavam por causa da comida. Sem saber, ligavam a cozinha japonesa à chinesa e me garantiam que eu teria de engolir sushi com palitinho (coisa que não me cai bem).

Estavam redondamente enganados. Primeiro porque em Cingapura, não se come comida japonesa. Aliás, nem em Hong Kong. Muito provavelmente só no Japão. Como a colônia japonesa é a maior do mundo, em São Paulo, os paulistanos julgam que sofisticação em pratos, na Ásia, se alia inevitavelmente ao famoso “arroz enrolado com fita isolante”.


Em poucas cidades do planeta posso dizer que comi tão bem quanto em Cingapura. Havia de tudo. Sempre conto que no café-da-manhã serviam torta de morango e um punhado de outros doces (que brasileiro acha que só tem no Brasil). Pior: todas as frutas consideradas exclusivas nossas, estão lá para quem quiser pegar, aos montes: carambola, jaca, laranja, manga, melancia, etc.

Assim, no primeiro dia, jantei no Café des Artistes do hotel sem qualquer problema quanto ao paladar. Claro que fui apurando o gosto e pendendo para os alimentos aos quais estava mais acostumado, é natural. Eles têm obviamente, no dia a dia, outras preferências que não são as nossas, no entanto, friso que, se você quiser um prato puramente “ocidental”, você vai encontrar lá sem grandes dificuldades.

Robert Poh e o Café des Artistes

Hotel Facilities

Manuel, Robert Poh e Eu (em foto de algum garçom amigo)

À primeira vista, pode parecer que muito do meu deslumbramento advém do luxuoso hotel cinco estrelas em que me hospedei. Céticos afirmariam que não precisaria estar necessariamente em Singapore para desfrutar de todo esse bem-estar. Pode ser, mas não creio.

Realmente, o Oriental me surpreendia sem parar. Todavia, não é uma questão apenas de ter dinheiro e investir em automatismos ou ostentação pura e simples. A polidez das pessoas, dos funcionários, era do tipo extra-ordinária: abrindo a porta, chamando o táxi, entregando o jornal, agendando tours, tirando dúvidas, sugerindo pratos — respeitando o cliente, suas opções e seu espaço.


Volta sempre o “batido” tema da educação. Não somente educação formal, aquela que senta as pessoas na cadeira da escola — mas a educação que vem de casa. Uma educação pelos valores humanos, pela compreensão, pela afabilidade, pelo convívio. Nunca para a competição, para a esperteza, para o ganho fácil. Fica evidente quando se está lá e se enxerga uma harmonia que transcende, de longe, a relação de negócios, de consumo ou de prestação de serviços.

Doctor Robert

Robert Poh era o maître que ficou meu amigo, tantos foram os cafés-da-manhã e os bons-dias que lhe dei. Havia trabalhado num navio que aportou em Recife, Santos, Fortaleza, e arranhava um português razoável. Sempre bem-humorado, fazia o possível e o impossível para agradar a mim e ao meu compadre Manuel Marías (falo deste mais adiante).

Fiquei de enviar-lhe as fotos tiradas ao seu lado, em retribuição aos macarrões à bolonhesa e aos steaks que ele descolava na cozinha do restaurante vizinho (no hotel havia vários).

Sono do Crioulo Doido

A primeira semana foi de confusão no relógio biológico. Tinha sempre um sono de fazer desmaiar lá pelas 7 da noite. Participei de um jantar com o pessoal do banco, acho que no terceiro dia, e sentado na mesa pisquei o olho e “apaguei” inúmeras vezes. Cheguei ao hotel às 21 horas e me sentia como se houvesse passado a noite em claro.

A contrapartida disso eram as madrugadas em que eu despertava elétrico e esperava pelo café-da-manhã (que começava às seis). Era igualmente perturbador: tomava banho, lia, checava os e-mails e o tempo não passava. Ficava enrolando e chegava mais cedo que todo mundo (lembro de ter acendido as luzes do escritório uma vez).

Cenário para meditações matutinas, quando não havia sono

Ainda o fuso

Era engraçado quando ligava para São Paulo. Atendia a Carol e eu não sabia se falava “bom-dia” ou “boa-noite”. Minha Mãe perguntava: “Que dia é aí? Ontem, hoje ou amanhã?”. Se eu ligava de manhã (em Singapura), eles me atendiam na noite do dia anterior em São Paulo. Se eu ligava de noite (em Singapura), eles me atendiam na manhã do mesmo dia em São Paulo.

O shutlle e o velhinho motorista Mais complicado ainda se pensado em termos de viagem de avião. Na ida, saí de São Paulo num domingo (à noite) e cheguei à Singa numa terça (à tarde). Na volta, saí de Hong Kong numa quinta (à noite) e cheguei em São Paulo numa sexta (à tarde). Sendo que em ambos os casos a duração da jornada foi a mesma: 30 horas.

Shuttle Ei Bi En Amber

Os funcionários do ABN AMRO, hospedados no Oriental, contavam com um serviço de shuttle que despejava os passageiros na porta do OCBC Center. Saía diariamente às 8, às 8 e 30 e às 9. Era conduzido por um velhinho muito simpático e desdentado que nos avisava da chegada com um sotaque muito típico, assim: “Ei Bi En Amber!”

Uma lembrança tão forte que jamais me perdoaria se não o tivesse fotografado. O bordão acabou virando marca registrada, saudação entre eu e o meu compadre Manuel Marías. 

Manuel: caiu do céu

Caiu mesmo. Eu já andava desanimado pela solidão, e por não poder dividir meus pontos-de-vista ocidentais com ninguém, quando ele me apareceu. Tomava o bus para o banco quando alguém, nem lembro quem, me perguntou: “Where are you from?”. Tão logo respondi “Brazil”, o Manuel se aproximou, contente, proclamando: “It is good to find someone from Latin America here.

Ele era argentino, de Buenos Aires, e me fez companhia como poucos brasileiros fariam. Eu teria dezenas de histórias para contar dele e das situações que vivi ao seu lado. Todas divertidíssimas.

Sim Lim Square

Nossa primeira aventura latino-americana foi uma ida ao que o Manuel anunciava como “el paraiso de la electrónica”. Sim Lim Square era uma espécie de shopping com uns quatro ou cinco andares de televisores, videocassetes, câmeras, aparelhos de som, etc. Os preços eram baixos e, ainda assim, havia espaço para regatear. Meu amigo apaixonou-se por um “equipo” com Video-CD (algo entre o CD e o DVD) e, sob o pretexto de presentear sua namorada, fechou o negócio logo. Não com um vendedor qualquer, mas com um que tinha “classe” — pois não queria estar adquirindo um artigo “pirulo”.

Manuel y su equipo

Tão logo pisou no quarto do hotel, fez a instalação do aparelho. Não sossegou enquanto não tocou alguns clássicos do rock argentino e, principalmente, enquanto não testou o inédito recurso de Video-CD. Atrás de uma bela projeção que pudesse fazer uso de todos os efeitos audiovisuais, adquiriu “Titanic” (Ti-tâ-nic, de acordo com a sua pronúncia) e lá fomos nós para a sala de cinema. Fio pra lá, fio pra cá, ficamos sem imagem e curtimos apenas a abertura da 20th Century Fox, com rugido de leão e tudo. Algum barulho do fundo do mar também, é verdade.

City Tour: Little India e Little China

À dupla, juntou-se logo mais, o americano cujo nome não guardamos. Cheio de piadinhas autodepreciativas, estava lá pela Cisco (aquela empresa que ultrapassou a Microsoft em “tamanho”). Nossa guia, no tour, era uma baixinha estridente e o Manuel logo apelidou-a de “la petiza”.

Cruzamos com os principais monumentos a Raffles, o fundador de Singa. Passeamos pelas margens do rio que dá nome à cidade, conhecemos o Merlion (mistura de leão e peixe) e demos uma parada em dois bairros típicos.

Americano escolhendo sapatos de Aladin em Little India
Foto proibida do altar do Pagoda

Little India me impressionou pela arquitetura de pé-direito baixo e de corredores estreitos. A música, muito forte e ritmada, dominava a atenção de qualquer um — e eu me arrependo de não ter adquirido uns CDs, quaisquer que fossem. Outra impressão forte foi observar cidadãos comendo com a mão, sem pratos, sobre uma folha de bananeira.

Little China me marcou pela conservação e pelo templo Pagoda, o qual fotografei o mais que pude. Tanto que adentrei e fiquei de cara com o “altar”, sem saber que precisava ter tirado os sapatos. Fui expulso aos berros em uma língua que não entendia bulhufas.

A essa altura a máquina fotográfica do Manuel pifou e o americano ficou falando que era a maldição do templo. Meu compadre passou a tarde inconformado com a broxada de sua Pentax — garantindo, outrossim, que em quinze anos aquilo nunca lhe havia acontecido.

Jardim Botânico

Os irretocáveis dias de sol promoveram um desfile de intermináveis belezas tropicais. No Jardim Botânico, mais do que em qualquer lugar, se afirmou o parentesco indelével dos “tristes trópicos” daqui com os “felizes trópicos” de lá. Um fator de orgulho, porém, ao mesmo tempo, algo a se lamentar.


Em menos de 5 dias, ficara provado para mim que subdesenvolvimento não é conseqüência inevitável de paisagens verdejantes, frutíferas, de clima úmido e ameno. Aquela Cingapura triunfal, de relevância econômico-financeira, de população rica e civilizada, de organização, harmonia e águas claras, me fazia constantemente pensar no que é que o Brasil podia ter sido e não foi.

No excuse. A incompetência é nossa mesmo.

Caminhos do Jardim Botânico de Singapore


Eurocentrismo

Outro ponto que notei e que fiz questão de ressaltar em conversas é que, para eles, asiáticos em geral, a Europa não é o centro do mundo. Nunca foi, nem nunca será. Eles não se sentem como colônias exploradas (embora os ingleses também tenham fincado bandeira lá). Eles não têm qualquer deslumbramento pelo cultura ocidental ou pelo “Velho Mundo”. Conhecem, respeitam, mas não se consideram em desvantagem com relação aos europeus.

Pelos Estados Unidos da América, nutrem um sentimento de admiração. Sem, no entanto, mais uma vez, tomar isso como afronta ou desculpa para se fazer de vítima do imperialismo yankee.

No meu entender, eles têm uma identidade amadurecida e solidificada. Se tomarmos a forte influência chinesa e hindu, são alguns milênios de tradições, ritos e culturas que as revoluções francesa, inglesa, americana não apagam e nem têm como apagar. É como uma criança querendo mudar as convicções de um adulto: muda a superfície, mas o fundo, o que está entranhado, não muda nunca.

E isso tudo não é discurso de sociólogo, psicólogo ou historiador, é fato, é parte do povo, caminha pelas ruas. Tanto quanto o nosso latino-americano complexo de inferioridade.

"Cable car" que nos conduziu a Sentossa (ao fundo)

Sentosa Island

Tal ilha era anunciada desde que pisei em Singa. O pessoal local, do banco, me dizia: “Visite Sentosa, é caro mas vale à pena”. Já engrenados nos tours do hotel, eu e o Manuel apenas tivemos de reservar e, em seguida, tomar o ônibus que veio nos buscar. Pessoalmente, tinha uma má vontade com excursões organizadas e de tempo marcado, mas o esquema revelou-se mais solução que problema.

A ilha era imensa e recebeu-nos com um auspicioso dragão chinês. Entrecortada por um monorail conduziu-nos primeiramente a um museu de cera onde se contava a História da cidade-estado-país, o Images of Singapore. Desde Raffles até a pujança dos skyscrapers, passando pelos costumes e práticas de cada povo, pela invasão japonesa durante a 2ª Guerra Mundial, etc. Meu amigo argentino fotografou tudo; eu, nem tanto.

Hipnotizados ficamos com o passeio pelo Underwater World, grosso modo, um aquário com peixes e criaturas do mar da região. Num daqueles túneis em que se vê quantidades incríveis de animais, passando por todos os lados, em alta velocidade, como se estivessem voando, senti aquela integração, aquela emoção que ouço dizer das pessoas que mergulham: como se o mundo fosse apenas aquela realidade no fundo das águas, no silêncio, nas cores, nos movimentos graciosos daqueles bichos que, em suas travessuras, nos saúdam — e a noção de tempo vai embora.

O Merlion (no centro), em Sentosa


Night Safari

Ainda para ficar nos animais, planejamos ir ao zoológico mas não fomos. Um episódio engraçado que ocorreu, relacionado a isso, foi que: quando chegamos para reservar a ida ao zôo, Manuel frisou que não tomaríamos café-da-manhã lá, no local, pois não queríamos pagar mais caro por algo que era grátis no nosso hotel. O sujeito da “conciergerie”, que agendava os passeios para nós, entendeu ou, por engano, escreveu “with breakfast” (com café-da-manhã). Meu compadre argentino sentiu-se ludibriado, ficou fulo da vida, pediu para corrigir imediatamente e emendou: “We come from very far but we understand!” (Como se houvesse a intenção de nos fazer de bobos apenas porque vínhamos do outro lado do planeta...)

Outra das vezes em que atingiram o Manuel em seus brios, foi quando um texano, no elevador, chamou-o de “sudaca”. Eu não tinha a menor noção do significado pejorativo da palavra e só pude rir quando ele, ultrajado, vermelho e falando grosso, bradou que não era nenhum “sudamericano hijo de puta”.

Continuando no reino animal, igualmente impressionante foi a ida ao Night Safari. O único parque da Terra em que se visita os seres que são ativos durante a noite. Dividido por regiões, como que para representar as diferentes populações do globo, abriga leões, tigres, búfalos, hienas, ursos. Dentre os mais belos, para mim, encontrei o rinoceronte, que vive em solidão e que o Manuel classificou como “asqueroso” (pronuncia-se à la porteña), em seguida, os delicados elefantes, em manada e esparramados, depois, as elegantes girafas, a marchar nas trevas.

A turma estava bem cosmopolita. Um casal de russos que viviam em Tóquio foi a atração dessa vez. Ele, por ser cientista, irritar e encher o guia de perguntas desconcertantes sobre os animais. Ela por caminhar muito calmamente e, em suas filmagens, perder-se do grupo constantemente. O marido apressava-a aos berros: “Catchussa! Catchussa!”. Até o ponto em que se desencontraram definitivamente e ele correu esbaforido, pedindo a nossa ajuda: “Wait! Wait! I’ve lost my wife!

Raffles Hotel


Night Tour e Raffles Hotel

Para continuar nas noturnas, rodamos Singa no que chamavam de Night Tour. Tomamos um daqueles barquinhos, tipo de pescador, pelo rio afora, cruzamos as principais pontes da cidade e aportamos em frente a um conjunto de bares e restaurantes. A especialidade da casa era cozinha chinesa e, entre nativos, árabes, ingleses e alemães, demos boas gargalhadas diante da inabilidade de todos em manejar os palitinhos e se entender com o aparato de vasilhas, cumbucas e copos.

Logo após, um dos hotéis mais impressionantes que já encontrei na vida: o Raffles (uma dica dos primos da Carol que moraram em Singapore). Da época da colonização anglo-saxônica, conservava-se em jardins e mais jardins, estruturas brancas, rigor nas formas, bom gosto e refinamento. Hoje com uma diária proibitiva de mais de 600 dólares, passou por dificuldades em outros tempos. Arrependo-me por não ter escapado da excursão e passado algumas horas ouvindo um ótimo trio de jazz que performava por lá.

Fechamos as noturnas, com uma ida a Bugis Street (ou foi antes, não importa). Uma concentração aflitiva de pessoas e bugigangas. Empolgou o Manuel que voltou no dia seguinte para adquirir uma meia dúzia de relógios Rolex “truchos” (falsificados, segundo ele), para a família toda, por menos de 10 dólares, e um fulgurante quimono azul de ceda pura, por menos de 20 dólares. (Esta na foto que ele me proibiu de divulgar.)

Birdpark e La Gente de Singapur

Enquanto meu amigo se deliciava com os magazines de artigos falsificados a preços ínfimos, eu percorria os caminhos do Birdpark. Entre araras daqui que vivem melhor lá, até periquitos e galinhas multicolores, passando por pavões altivos, emas australianas, flamingos de alaranjada perfeição, pelicanos — e, acreditem se quiser, gente de Singapore.

Manuel em trajes de lorde
La Gente de Singapur

Explico. Concentramo-nos todos para assistir ao Birdshow e eu, sem querer perder essa oportunidade única, tratei de retratar a platéia, enquanto ela se entretia com os passarinhos e não me notava. Foi a maneira que encontrei para carregar aquele povo comigo, e depois mostrar àqueles que, no Brasil, tanto me perguntavam como eram as pessoas de lá. Uma homenagem a todos que me acolheram tão bem, como se eu fosse igual, como se eu fizesse realmente parte.

My Dear Colleagues

E se a hora é para homenagens, vamos aproveitar. Foi com saudade que deixei o escritório e os meus colegas de ABN AMRO Bank. Sempre tão atenciosos e dedicados a me explicar e me ajudar no que quer que fosse. Tão humanos quanto nós, nem melhores nem piores — nunca correspondendo ao quadro que se pinta dos asiáticos, como se fossem eles super-mulheres e super-homens.


Richard que xingava e exclamava o dia inteiro para, na minha despedida, comentar: “depois vocês dizem que nós somos frios e desprovidos de paixão”. Manish, extremamente amigável e sensível, com sua língua presa e suas histórias desde que deixou a Índia. Shashank com seu bigodinho malandro, seu inglês enrolado, o bom-humor e as piadas que soltava. Davy Goh, incuravelmente otimista, hiper-ativo, com suas mensagens e seus slogans de motivação. Andrew, seu cabelo para trás com gel, e sua entonação neozelandesa que era pure british. Ankur, sua afabilidade e sua expressão, que era a da mais límpida bondade. Arvind, meu colega dos Emirados Árabes, simpático, disposto e preocupado. Elaine, doce e discreta. Angela, gozadora e zombeteira. Sem falar em outros, muitos outros. A lista é enorme.

Da esq. para dir.: Davy Goh, Arvind, não sei (em cima), Shashank (em baixo), Manish, Ankur (de pé), Andrew (sentado), Clara (de joelhos), Richard e Elaine


See ya, Manuel

Do meu compadre Manuel, me despedi com um belo jantar que mandamos debitar na conta do banco: “Si te preguntan, vas a decir que fue una cena de negocio. Y a mi, si me preguntan, voy a decir lo mismo.Assim, com a alma lavada, nos fartamos com o cardápio do Morton’s. Para o garçom que veio cheio de detalhadas explanações, Manuel cortou dizendo que queria um bife “no muy ancho, con poca grasa y bien tiernito”. Encerramos com sobremesas vindas direto de Nova Iorque (obviamente um exagero de marketing) e carregamos o pão do couvert, que era do tipo italiano (consumido ainda pela metade). Incluindo as bebidas, não muito sofisticadas, somou uns cento e tantos dólares para cada.

Perto de partir, meu amigo esteve mal das vias respiratórias e temeroso por ter de tomar o avião, requisitou-me, então, para acompanhá-lo ao médico. A toda pessoa que encontrava, justificava: “This is not my normal voice. It’s because the air conditioning here is very strong...Medicado até a próxima estação, pôs-se mais aliviado e quase que curado.

Na manhã seguinte, parti para Hong Kong e ficamos de nos visitar nos respectivos países. Disse que queria ver a nossa viagem na minha página e que vai opinar.

(Manuel, agora é com você.)

Último passeio com o Manuel em Singa


Life Goes On

Numa madrugada fria e ainda cinza, despachei as malas que mal fecharam graças a coisas como notebook, DVD, discman, livros, fotos, CDs, presentes e outros badulaques que trouxe, comprei, ou juntei em Singapore, nessas três intensas semanas. No aeroporto, começava a segunda parte da jornada de business (que eu pretendo abordar em uma seção especial sobre Hong Kong).

De Singa, ficou esse amontoado de lembranças e pessoas que eu aqui junto, dois meses depois. Oxalá, possa juntá-los sempre, como uma experiência que definitivamente me marcou.

Espero tê-los convencido a visitar aquelas paragens. Existe, no Oriente, todo um mundo nos esperando. Um mundo único que não podemos nem imaginar como é enquanto não pisarmos lá.

Eu só sei que pretendo voltar, e abraçar Singa mais uma vez.

J. D. Borges

São Paulo, 10 de junho de 2000.

Um dos cartões postais de Singapore