François, Jules et Jim

François Truffaut fez cinema literal. Senhor da mistura indistinguível entre sons e imagens, Truffaut, como Godard, era um obcecado pela palavra. Herdeiro do preto-e-branco e do cinema-mudo, reintroduz a narração e dá aos diálogos um papel fundamental, senão preponderante, na compreensão de suas obras.

Em Jules et Jim, concebe um triângulo amoroso, cujas personagens, de motivações inescrutáveis, só podem ser compreendidas pelas explicações que dão ou pela voz grave e reveladora do narrador. Seus atos não bastam, suas ações não bastam. Para explicar-lhes os propósitos, os desejos, as vontades, é preciso um pouco de literatura.

Tout le reste est littérature

Jules et Jim conta a história de uma amizade. Uma amizade que atravessa qualquer rivalidade. Uma amizade permeada pelo amor. O amor de Jules e Jim pela mesma mulher. Um amor que, para Truffaut, só pode ser trágico. Um amor que, para Truffaut, só pode encontrar solução na morte.

Como eu não sabia se o filme faria sucesso, passei toda a filmagem angustiado. Jules et Jim foi feito numa época de minha vida em que eu vivia com medo de morrer. Eu dirigia o meu carro com muito cuidado, amedrontado, dizendo-me que, em caso de acidente, as matrizes do filme jamais se encontrariam.

Jules et Jim

“Cada um ensinava ao outro, até tarde da noite, sua língua e sua literatura; mostravam seus poemas e os traduziam em dupla. Tinham também, em comum, uma relativa indiferença pelo dinheiro. Eles conversavam sem pressa, nenhum dos dois jamais encontrou um ouvinte tão atento.”

Jules e Jim conheceram-se por ocasião de uma festa a fantasia. Estavam em 1912, anos antes da Primeira Guerra — a época mais propícia, talvez em todo o século XX, para se iniciar uma amizade terna e eterna entre um alemão e um francês. Belle époque. 

Deux hommes à femmes

“Jules não tinha namorada em sua vida parisiense (...) Jim tinha várias. Encontrou para Jules uma jovem musicista. (...) Jules enamorou-se um pouco, uma semana, e ela também. Depois houve outra, desenvolta, feqüentadora de bares (...) Outra ainda, uma jovem viúva loura. Eles faziam programas a três. Ela desconcertava Jules, pois o considerava gentil mas tolo (...) Enfim, contra os conselhos de Jim, Jules tomou contato com as profissionais, mas sem encontrar aí nenhuma satisfação.”

Truffaut, a fim de trazer veracidade e credibilidade ao tempo e às cenas, acelera a fita e a narrativa nos primeiros minutos, condensando informações e acontecimentos num ritmo frenético, a toque marcial. Evoca as primeiras aparições do cinema e resume, a Paris dos anos 10, a um carrossel de bistros, noitadas, vida intelectual e mulheres.

Thérèse et Gilberte

Para dar uma idéia da permissividade daquele então, Truffaut introduz Thérèse. Aparentemente uma andarilha sem causa própria, ora anarquista, ora meninota, dormindo com quem quer que lhe ofereça teto.

Numa das seqüências mais surreais do filme, no apartamento de Jules, Thérèse acende um cigarro, abocanhando a brasa, assoprando e produzindo fumaça na outra ponta, à maneira de uma “locomotiva a vapor”.

Na seqüência seguinte, Jim despede-se de sua namorada, Gilberte, que lhe suplica: “Uma vez, você bem que poderia ficar aqui, para dormir comigo.” Ao que Jim responde, no melhor estilo descompromissado: “Se eu fico, tenho a impressão de te abandonar — caso não fique no dia seguinte. E se eu fico no dia seguinte, estaremos comprometidos e, portanto, praticamente casados — o que é exatamente o contrário das nossas convenções, não é mesmo?

Esse era o clima de bonomia e despreocupação que reinava entre os dois amigos. Viviam de amores leves, de pequenas aventuras e de dilemas inofensivos. Naquela pureza e naquela inocência de quem não sabe que isso tudo um dia acaba. Truffaut encena, assim, a cumplicidade cega, o companheirismo infinito que marcam dois homens no auge de uma amizade.

Chez Albert: la statue

Claro que, numa atmosfera trágica, a maré de tranqüilidade não poderia durar. Os primeiros abalos se fazem sentir numa sessão de slides, na casa do amigo Albert, em que Jules e Jim têm a visão da estátua. Um busto de mulher, em  ruínas, torna-se, de um momento a outro, uma obsessão para ambos. E eles vão perseguí-lo numa ilha do Adriático:

“Passaram uma hora com a estátua; ela estava além de suas expectativas; eles a rodearam em silêncio. Só falaram dela no dia seguinte. Já haviam visto esse sorriso antes? Jamais. Que fariam eles se o encontrassem um dia? Eles o seguiriam.”

Truffaut sugere, nesse episódio, a concepção de um “ideal de mulher”, antes da mulher. Uma concepção tipicamente masculina. O rosto, os lábios, o sorrir, talhados na pedra — como representação das formas perfeitas, como o “universal” que Jules e Jim buscariam numa mulher de carne e osso.

Catherine

“Recebi uma carta de um primo meu. Ele anuncia a chegada de moças que estudaram com ele em Munique: uma berlinense, uma holandesa, uma francesa. Elas vêm jantar em minha casa amanhã. Conto com você.”

Catherine, a francesa, tinha o sorriso da estátua da ilha. Não foi preciso muito para que Jules e Jim se rendessem a ela. Jim à sua maneira mais reservada, discreta, quase que indiferente. Jules, de forma mais direta, afoita, sedenta.

É, portanto, Jules que apressa-se em conquistá-la, em vê-la com mais freqüência, em tê-la, em suma. 

Le course de vitesse

Na rua, vestida de homem, num disfarce que encanta a Jules e Jim, Catherine propõe uma corrida dentro de uma passarela. Trapaceia e ganha dos dois.

Uma metáfora da relação que se estabeleceria entre os três. Catherine sempre no comando, dando as ordens e satisfazendo seus caprichos sem qualquer justificação. Jules e Jim, embevecidos por sua musa, sempre a obedecer-lhe, subjugados por essa mulher que Jules definiria tão bem mais adiante:

“Catherine não é excepcionalmente bela, nem inteligente, nem honesta, mas é uma mulher de verdade. É a mulher que nós amamos. É a mulher que todos os homens desejam. Por quê Catherine, passando por cima de tudo, exige sempre a nossa presença? Porque nós lhe damos completa e total atenção, como a uma rainha.”

La Maison Rêvée

O trio, embriagado pelas alegrias da própria convivência, decide alugar uma casa fora de Paris, uma “casa dos sonhos”: “Excessivamente grande, mas isolada, um pouco solene, branca por dentro e por fora, sem móveis.”

É nela que as ligações entre os três se consolidam e se desenvolvem com plenitude. Na rotina, nos ciclos, nas horas longas, na falta de propósitos do dia-a-dia.

Protagonizam uma alternativa de felicidade apontada por Truffaut: a felicidade que se apóia nas bases de uma mulher e dois homens; ou, ainda, a felicidade que se apóia nas bases de um homem e duas mulheres.

Épouser Catherine

O desequilíbrio, entre os três, se insinua, porém, quando Jules resolve pedir Catherine em casamento, ao que ela responde muito racional: “Você não conheceu muitas mulheres. Eu, pelo meu lado, conheci muitos homens. Isso dá uma boa média. Talvez possamos formar um casal honesto.

Jules, otimista: “Pedi Catherine em casamento. Ela quase que me disse ‘sim’.

La Reine

Catherine, como todo o ser de personalidade exacerbada, temperamental, pede dedicação, pede abnegação, pede devotamento. Quer ser o centro todo o tempo: quando não é, procura trazer o foco para si, a qualquer custo:

Em princípio, acabei de contar uma história engraçada. Divertida, vá lá. Vocês bem que poderiam rir. Ou, ao menos, sei lá, sorrir.

Sem conseguir que Jules e Jim interrompam sua tertúlia, Catherine pede que lhe cocem as costas. Jules, em provocação, responde: “Coce você mesma.” É o suficiente para que ela se levante, avance até ele e acerte-o com um tapa na cara.

La Seine

Outro exemplo do caráter incontrolável e imprevisível da heroína pode ser encontrado numa seqüência mais adiante. Já de volta a Paris, depois de uma sessão de teatro (que visava celebrar o primeiro contrato de Jim com seu editor), Catherine se rebela contra os comentários machistas de Jules (que cita Baudelaire):

A mulher é natural, portanto abominável? (...) Assombração, monstro, assassina da Arte, idiota, safada. (...) A maior imbecilidade unida à maior depravação. (...) Sempre me surpreendi como deixamos que as mulheres entrem na igreja. Que tipo de conversa elas poderiam ter com Deus?

Catherine diminui o passo e segue seu próprio caminho, equilibrando-se no patamar estreito, entre o rio e a rua. Com muita delicadeza: pára; atira seu casaco ao chão; olha em torno; levanta o véu — e joga-se dentro do Senna.

Mariage et Séparation

Indecisa entre dois amores — um pronunciado, outro tímido —, Catherine marca encontro com Jim, num café, para conversar. Ele atrasado, pensa que ela, no horário, foi incapaz de esperá-lo. Aguarda uma hora e vai-se. Catherine chega, no minuto seguinte, mas Jim não está mais.

Alô, Jim? Te acordei? Nós partimos para o meu país, Catherine e eu, para nos casarmos.” — anuncia Jules, no dia seguinte, eufórico.

Por um desencontro de minutos, Jim perde Catherine? Por um erro de cálculo, Catherine entrega-se ao homem errado? Truffaut não dá a resposta e nem permite às personagens voltar atrás. Logo estoura a Grande Guerra e eles se separam de acordo às bandeiras de suas respectivas pátrias.

Guerre

A fim de assegurar realismo ao seu entreato, Truffaut injeta trechos de documentários verídicos sobre a Primeira Guerra. Imprime, definitivamente, maior peso e maior densidade às personagens:

Sabe, Gilberte, por vezes, nas trincheiras, tenho medo de matar Jules.

Serei enviado para combater no front russo. Isso será duro, mas prefiro isso, pois vivo na agonia de poder matar Jim.

Victoire et le chalet

O país de Jules havia perdido a guerra; o país de Jim havia ganhado. A vitória, no entanto, estava no fato de que ambos estavam vivos.

Finda a guerra, Catherine e Jules se instalam num chalet próximo ao Reno, acompanhados da pequena filha Sabine. Jim é convidado para visitá-los. Catherine vai esperá-lo na estação de trem. O passado ecoa em estrondo:

Jim teve a impressão de que chegava ao encontro, naquele café, com um enorme atraso, e que Catherine se vestia para ele. Ela conduziu Jim ao seu chalet rústico, entre pinheiros, no campo.

Truffaut constrói, a partir daí, um jogo de tensões, entre uma mulher casada, com família, e o melhor amigo de seu marido; ou, então, entre um homem solteiro, desimpedido, e a esposa de seu melhor amigo.

Vie Familiale

O reencontro entre Jules e Jim se faz com uma certa cerimônia. Em meio a assuntos sem importância, Jim relata seus sucessos como articulista do pós-guerra; enquanto Jules enumera suas peripécias como pesquisador de insetos. Catherine, dedicada a assuntos domésticos, apresenta a casa e organiza as refeições.

Jules e Jim retomaram sua longa conversa interrompida. Contaram de suas guerras. Jules evitava falar de sua vida familiar. Catherine o tratava com gentileza e respeito, mas Jim tinha a impressão de que as coisas não iam bem.

Des Amants

Logo mais à noite, Jules faz suas revelações e põe Jim estarrecido:

Temo que Catherine nos abandone. (...) Sabe, Jim, ela não é mais minha mulher, na prática. Ela teve amantes. Três, que eu saiba. Um, às vésperas do nosso casamento; um, na sua despedida de solteira; e um, como vingança contra alguma coisa que eu fiz mas ignoro. (...) Pelo meu lado, habituei-me ao fato de que ela seja, por vezes, infiel — mas não suportaria que ela partisse.

Truffaut aborda com coragem um dos problemas cruciais do casamento: o da infidelidade. Inverte as posições: põe a mulher no lugar do homem; e o homem, no lugar da mulher. (Ainda que negue, manifesta seu entusiasmo pelo feminismo dos anos 60, em que roda o filme.)

Catherine parle

Malgrado a contradição em termos, Truffaut induz Catherine à reflexão. Em geral, não se espera que uma “force de la nature” seja dada à revisão e à crítica de suas próprias atitudes ou das atitudes dos outros. Enfim, Truffaut insiste no insight da inconseqüente Catherine e ganha-se um outro ângulo:

Eu vou recontar toda a história como eu a vivi. A generosidade, a inocência, a vulnerabilidade de Jules me fascinaram e me conquistaram. (...) Eu pensava curá-lo, pela alegria, das crises em que ele se perdia, mas compreendi que as crises são parte dele mesmo. (...) A felicidade não se instalou entre nós e nós nos vimos face a face, desnudados. (...)

Explode a guerra. (...) Jules me escreve cartas de amor fogosas, admiráveis. De longe, ele me amava enormemente, e eu o entronizava, como a um anjo. Nosso primeiro desentendimento, verdadeira ruptura, data da sua primeira licença: eu me senti nos braços de um estranho. (...)

Jules, como marido, terminou para mim. Eu lamento por ele. (...) 

Albert e la chanson

Dentre os amantes de Catherine, está Albert (o mesmo da estátua). Ferido na guerra, em convalescênça, desperta a compaixão da protagonista. É vizinho do chalet, na região do Reno. (Sua proximidade é sempre um pretexto para as recaídas luxuriosas de Catherine.)

É forçoso afirmar que Truffaut deixa transparecer sua dívida inestimável para com Roberto Rossellini. Sobretudo nas cenas líricas, em que as personagens abraçam a natureza em locações privilegiadas; ou então nos monólogos, como quando Jim reconstitui a poética trajetória de um soldado apaixonado; ou ainda no carisma de Catherine, ao embalar uma canção especialmente composta por seu admirador Albert:

On s’est connu, on s’est reconnu, / On s’est perdu de vue, on s’est perdu d’vue / On s’est retrouvé, on s’est rechauffé, / Puis on s’est séparé. / Chacun pour soi est reparti. / Dans l’tourbillon de la vie / Je l’ai revue un soir, haïe, haïe, haïe / Ça fait déjà un fameux bail. / Ça fait déjà un fameux bail. (...)

Un obstacle

Em meio a uma confusão de sentimentos, Jim chega a um impasse. Apesar de Albert e dos outros amantes, sente que tem Catherine ao alcance da mão. Apesar de Jules, e da sua miséria como marido e amigo, recebe do próprio o seu beneplácito:

Jim, Catherine não me quer mais. Tenho horror a perdê-la e vê-la sair da minha vida. A última vez em que te vi ao lado dela, vocês formavam um belo casal. Jim, ame-a, case-se com ela, e deixe-me vê-la. Ouça o que te digo: se você a ama, pare de pensar em mim como um obstáculo.

Jim segue em frente. E desperta para uma nova realidade. “As outras mulheres não existiam mais para ele.

Bonheur

O trio, agora um quarteto, com a pequena Sabine, vive sua derradeira temporada de felicidade. Jim se instala definitivamente no chalet, por sugestão de Catherine, embora receoso quanto a Jules. Ela tranqüiliza-o: “Jules nos ama, aos dois. Ele não se surpreenderá e sofrerá menos assim. Nós o amaremos e o respeitaremos.

Jules, no que lhe cabe, dá seu alerta: “Atenção, Jim. Muita atenção a ela e a você.

O resultado, contudo, é de harmonia e de equilíbrio: “Na vila, no fundo do vale, eles ficaram conhecidos como ‘os três loucos’, mas, fora isso, eram bem vistos. (...) O tempo passava. A felicidade não se fazia sentir; quanto mais a usavam, mais ignoravam seu uso.

Jim à Paris

Tal temporada ditosa inevitavelmente se interrompe. Jim, por obrigações profissionais, regressa a Paris:

A partida foi dolorosa para eles sem a certeza de que se reencontrariam logo, intactos, como na despedida. Em um mês, eles haviam colecionado uma infinidade de pequenos momentos de perfeição (...) Quando o trem saiu, eles acenaram longa e docemente. Jules lhes havia dado sua benção: abraçara Jim, o qual lhe confiava Catherine, em sua ausência. Eles planejavam casar-se e ter filhos.”

Truffaut, sem causar sobressalto, realiza seu intento: separa Jules de Catherine, enquanto junta Jim e Catherine. Numa manobra que camufla sofrimentos estóicos, induzindo, sutilmente, uma reviravolta moral no espectador.

Lettres et l’enfant

Em sua temporada parisiense, Jim se embaraça novamente com Gilberte (a mesma de sempre). Custa a abandoná-la e, junto com ela, uma série de promessas empoeiradas de amor. Catherine o percebe, através de suas cartas, e promove retaliação: volta aos braços de Albert.

Reúnem-se e acertam-se, Catherine e Jim, no chalet. O pesadelo, porém, agora, é outro: sonham com a gravidez que não vem e com o filho que não conseguem ter.

Truffaut, inclemente, vai enterrando e sufocando os anseios da dupla. Jules, ainda que alquebrado, apóia-os como pode.

Enfim féconde

Eu te amo, Jim. Há tantas coisas sobre a terra que nós não compreendemos... E tantas coisas incríveis que são verdadeiras. Estou finalmente grávida. Agradeçamos a Deus, Jim. (...) Teu amor é parte de minha vida. Você vive em mim. Creia em mim, Jim, creia em mim. Este papel é tua pele, e a tinta, o meu sangue. (...)

A constatação da gravidez e as cartas que trocam no período são o canto de cisne do romance. Dali a pouco, Catherine viria a perder o seu bebê, através de um aborto natural, e eles se separariam para sempre.

Devemos encarar as coisas como são. Nós fracassamos, nós arruinamos tudo. (...) Não tenho mais esperança em me casar com você. É necessário que você o saiba, Catherine.”

Épilogue

Jules e Catherine transferem-se para Paris. O que os une é a apenas a compaixão de Jules por uma mulher emocionalmente desequilibrada. Catherine tenta matar Jim em duas tentativas. Na primeira, ameaçando-o com um revólver. Na segunda, convidando-o para um passeio em seu automóvel.

Truffaut encaminha-os para uma ponte quebrada. Catherine encara Jim pela última vez e acelera em direção ao abismo. Jules, assistindo a tudo, à distância, levanta-se assustado, enquanto o carro despenca do alto — e mata o casal.

Jim e Catherine não deixaram nada deles. Jules tinha sua filha. Catherine havia amado o conflito pelo conflito? Não, mas ela havia atormentado Jules até o limite da náusea. Ele se sentia aliviado.”

“A amizade de Jules e Jim não teve equivalentes no amor. Juntos, compartilharam o mesmo prazer pelas pequenas e pelas grandes coisas. (...) Isso, desde o começo, quando eram chamados de Dom Quixote e Sancho Pança.

Truffaut encerra assim sua obra-prima, defendendo a tese de que o amor nunca atinge a mesma perfeição da amizade. Ao mesmo tempo, ama a sua heroína e não consegue fazê-la menos cruel — para com aqueles que lhe querem tão bem. Catherine era um terremoto, não havia outro fim possível para ela. Jules, um ingênuo, um sonhador, um puro — fraco, não poderia escapar do sofrimento (fosse com Catherine, fosse com quem fosse). Jim, um idealista, um intelectual, um circunspecto; cheio curiosidade pelo mundo e pelas pessoas. Entregou-se à maior aventura de sua vida, e pagou o preço.

Truffaut traz a tragédia para o cinema, e, com ela, as indagações e as inquietações que, desde a Antiguidade, iluminam e ofuscam o homem.

Eu queria que as personagens fossem as mais vivas que pudessem. É por terem ‘vida’ que as personagens se impõem ao espectador. É preciso que essa ‘vida’ escape a todas as idéias que o espectador tenha a esse respeito. (...) É preciso oferecer às personagens todas as possibilidades de salvação e permitir que vivam todas as suas contradições.

Voilà Truffaut, Jules et Jim.

Julio Daio Borges