Homem Digno

Paulo tirava um dia por ano para viver uma outra vida que não a dele.

De carro, sempre à noite, tomava o rumo de uma cidadezinha desconhecida, no interior daquele vasto país. Lá chegando, deixava seu automóvel num estacionamento que se localizasse, de preferência, no centro da tal cidade.

Antes, porém, tirava um cobertor do porta-malas, guardava seus óculos no porta-luvas, despenteava os cabelos, trocava as roupas e deixava a barba por fazer. (A caracterização deveria ser a mais fiel possível.)

Despojado de toda e qualquer civilidade, procurava, então, por uma praça e, em seguida, por um banco, onde pudesse dormir. Obviamente dormia mal, mas isso já fazia parte da experiência.

Acordava com a claridade, com o canto dos pássaros, com o barulho dos primeiros comerciantes e com a visão dos primeiros passantes. Para ele, aquilo era acordar cedo. Sentia, evidentemente, a preguiça ligada ao madrugar mas tinha de levantar-se, pois o trabalho começava a partir daquele momento.

Pensando bem, não havia um horário preestabelecido, pré-fixado, não havia um "horário padrão" para aquela prática. Paulo, como qualquer um que já andara pelo centro de uma grande cidade, havia visto inúmeros mendigos estirados pelo chão em pleno dia, dormindo como cães vira-latas ao sol; ou seja, a flexibilidade, na jornada de trabalho, era uma coisa aceitável. Todavia, Paulo sentia-se compelido a começar cedo; sentia essa obrigação, de certa maneira, paradoxal.

As pessoas que freqüentavam a praça, durante as primeiras horas da manhã, tinham muita pressa, horários rígidos e obrigações a cumprir. Orgulhosas de seus afazeres, sentindo-se socialmente úteis, ativas, irritavam-se com Paulo e com sua maneira de, literalmente, ganhar a vida.

Às vezes, ele tinha de ouvir, logo cedo, os mais variados impropérios, aos quais respondia com citações depreciativas e famosas sobre o lado maçante, cansativo do trabalho. Algo que ninguém queria ouvir, pois questionar o sentido do trabalho era, de certa maneira, questionar o sentido da vida. Por conseguinte, a remuneração referente a estas primeiras horas era quase que inexistente.

Lá pelas oito, nove horas da manhã, o movimento crescia na praça.

Os primeiros a desfilar, neste segundo e despreocupado momento, eram os membros da chamada Terceira Idade. Trocava-se, então, a pressa pela lentidão, e a impaciência pela calma de quem tem tempo. Muito tempo. Muito tempo ou pouco tempo? "Pouco tempo de vida, mas tempo de sobra para viver." — refletia Paulo.

As velhinhas seguiam para as primeiras missas do dia e, comumente, viam em Paulo o retrato do filho desprotegido, desamparado, maltrapilho. Outras poucas senhoras de idade viam nele aquele homem feito, saudável e que revelava um retrato um pouco diferente: o do inegável vagabundo.

As emotivas pensavam na mãe de Paulo e sentiam um pouco da dor que ela sentiria se estivesse ali, cara a cara com um dos fracassados da Humanidade. As bondosas, com suas moedas, garantiam-lhe o café da manhã.

Já os velhos senhores vinham à praça, principalmente, para contemplar a vida em movimento, com aquela sensação de distância, como quem saiu de cena e espera pelo próximo ato. Não confundí-los, entretanto, com meros espectadores; estavam sempre prontos a proclamar que ao longo da vida haviam acumulado a incomprável Sabedoria. E assim, como quem acha que tem um número suficiente de respostas, dedicavam-se à arte vã de dar conselhos. (Duplamente vã. Primeiro porque ninguém os escutava, e segundo porque, se os escutasse, não os seguiria.)

Alguns dos velhos senhores vinham conversar com Paulo. Destes, a metade punha-se a repreendê-lo, querendo "endireitá-lo" com a experiência de pais que realmente eram. A outra metade era pura melancolia: contavam-lhe primeiro sobre quem poderiam ter sido, depois sobre quem achavam que tinham conseguido ser; nunca sobre quem realmente eram. E suas estórias sempre tinham algum tipo de moral, tão antigas que eram.

Às dez, Paulo tomava seu café com leite acompanhado de torradas repletas de manteiga. Escolhia um boteco de quinta categoria ou uma padaria densamente povoada por moscas. Sempre um lugar que tivesse uma aparência condizente (na medida do possível) com a sua — isto também fazia parte da experiência.

Mesmo assim, muitos dos digníssimos clientes do estabelecimento sentiam-se enojados e afastavam-se sem dó.

Ao redor de Paulo, ficavam apenas bêbados notórios, que quando notavam a sua presença tinham a desfaçatez de pedir-lhe "um trocado para uma birita". "Caro amigo, não sou dos que dá, sou dos que pede." — declamava ele, como que de improviso.

Ao longo do dia, as crianças da cidade vinham à praça brincar; longe de Paulo que as assustava sem fazer muito esforço, naturalmente.

Mesmo assim, surgia um ou outro infante curioso, que se aproximava com receio, que respondia bem ao primeiro sorriso e que, ganhando intimidade e confiança, começava a perguntar porque ele, Paulo, era "um tio tão feio e tão sujo". "Vou te contar uma história" — dizia Paulo num tom solene, arriscando eloqüência e atraindo, pouco a pouco, outros espectadores.

Começava aí, então, uma aula sobre a Vida de Um Homem Digno Incompreendido Pela Sociedade de Seu Tempo. A tertúlia, contudo, durava pouco.

Surgia sempre um cidadão — que conhecedor dos danos que as más influências causam ao caráter de indivíduos ainda não formados (e por isso não dotados de suficientes malícia e discernimento) — tratava de afastar os discípulos enquanto dirigia olhares repreensivos ao mestre. Alguns cidadãos mais radicais tomavam ainda uma segunda iniciativa: procuravam por um policial e alertavam sobre um tipo suspeito nas imediações da praça.

O almoço era solitário. Paulo, sentado na grama, dividia, consigo mesmo, um pãozinho francês e uma lata de sardinhas — adquirida num daqueles mercados mofados que só existem em cidades pequenas e que distribuem suas mercadorias em saquinhos, ainda de papel, onde se lê: "Servimos bem para servir sempre".

No transcorrer da refeição, às vezes ocorria de aparecer um colega de profissão de Paulo, pedindo-lhe um "naco" do seu almoço. Paulo, um pouco perturbado pelas adversidades do dia até ali e querendo apenas um pouco de paz durante a mencionada refeição, mandava-o "trabalhar vagabundo!"

Os adolescentes tratavam-no com indiferença.

Pareciam ocupados com outras coisas, apesar de — como todos sabemos — nunca terem absolutamente nada de importante para fazer.

Paulo lembrava-se desta fase na sua vida, e classificava-a como a Interminável Era do Sexo (Oposto): quando ele não estava falando sobre garotas, estava pensando em garotas; e nos raros momentos que não fazia nenhuma dessas duas coisas, era porque ele estava com uma delas. (Com uma garota que não era bem aquela da qual ele tinha falado e nem aquela na qual havia pensado, mas tudo bem; nessa hora eram os hormônios que falavam mais alto.)

Os rapazes podiam ser divididos em dois tipos: aqueles que possuíam turmas e aqueles que não se adaptavam a este sistema. Os "enturmados", quando não eram líderes, seguiam um líder.

Paulo, certa vez, tivera problemas com uma "gangue" de "enturmados" partidária da violência. Atacaram-no pela madrugada à base de paus e pedras. Desde então, Paulo carregava consigo uma pistola, pois nesses casos não era mais uma questão de "fazer parte da experiência", era uma questão de vida ou morte.

Com os rapazes "não-enturmados", os párias, ele poderia ter um contato amigável, uma vez que também vivia à margem do establishment. Tais jovens, no entanto, eram muito idealistas; inatingíveis nas suas elucubrações e no seu mundo.

As moças, "direitas" ou não, nem sequer olhavam para Paulo. Ele, além de parecer-lhes repulsivo, era, considerado um "tarado" em potencial. Algo que ele até achava compreensível. E não se sentia mal por isso, por ser odiado e, talvez, amaldiçoado por elas. Sabia que, com exceção das extremamente vaidosas e arrogantes, todas elas, no fundo, sentiam uma enorme pena daquele pobre homem da praça, comendo como um animal, sem direito a um banho, a algumas roupas limpas, a uma cama e a alguma forma de carinho. As mulheres dificilmente negavam sua maior vocação: cuidar de quem quer que se lhes apresente.

A tarde seguia lenta e repetitiva, surda e de poucas surpresas. Paulo tirava uma soneca durante as horas sem novidades.

A partir das dezessete horas, começava o retorno dos cidadãos do dever cumprido.

Felizes com o fim da jornada, aliviados do peso do dia que passara, costumavam contribuir ativamente em favor da causa de Paulo. Isso porque, exauridos de suas energias, não queriam mais julgar ninguém; nada de considerações sérias sobre as pessoas e sobre o mundo. Tentavam esquecer todos os pensamentos e não conceber nenhum outro novo até o dia seguinte, quando voltariam aos seus afazeres.

O jantar era composto por um misto frio e por uma garrafa de água mineral num outro estabelecimento comercial que não fosse o mesmo do café da manhã, mas de nível equivalente; fazia parte, claro, da experiência.

Tinha, agora, menos problemas com os clientes, já que eles eram, no jantar, em menor número; quase a totalidade da cidade fazia a sua refeição noturna em casa, em companhia da própria família.

O balconista do estabelecimento observava Paulo comendo e se perguntava quem seria aquele homem; quem seriam seus parentes; quem seriam os seus amigos. Como alguém poderia suportar uma existência tão terrível? tão miserável? tão... tão insuportável?

A noite — e a praça também — era dos namorados, dos românticos, dos sonhadores. Paulo reparava como eram todos iguais. Iguais a ele quando acreditava em amor eterno e em outras bobagens do gênero...

Apesar da nuvem de ceticismo, lembrou-se comovido das namoradas que teve e de sua esposa que, poderia estar, naquele instante, pensando nele. Lembrou-se de ter querido também conquistar e mudar o Mundo. O que ele considerava, depois desses anos todos, um desejo tremendamente ingênuo e pueril.

Ao mesmo tempo, reconhecia que sem ideais não teria chegado a lugar algum. "É preciso ser um pouco cego, crédulo e inconsequente para enfrentar a Vida e o Mundo" — filosofou.

 

Quando soaram as doze badaladas noturnas, Paulo dirigiu-se ao estacionamento e de dentro do carro tirou uma pequena mala. A seguir, retomou a calçada rumo ao Hotel mais próximo.

O recepcionista, ao vê-lo, assumiu uma postura receosa e sobressaltada, daquelas que precedem uma reação brusca e violenta. Paulo, exibindo o conteúdo de sua carteira, tranqüilizou-o, mas não de todo. As chaves do quarto foram entregues a contragosto e a "segurança" do Hotel foi posta de sobreaviso.

Paulo desfez-se da repugnante indumentária e seguiu para o banho — que foi meticuloso e demorado. Fez, então, a barba com calma e precisão. Vestiu a melhor roupa que possuía, penteou delicadamente os cabelos, pôs os óculos e perfumou-se como convinha a alguém que parecia prestes a participar de uma grande celebração.

Paulo, pálido e abatido, olhou-se no espelho e permaneceu alguns segundos fitando-se; silencioso em seus pensamentos.

Vieram, então, as lágrimas. Primeiro esparsas e solitárias, depois abundantes e persistentes.

À medida que as lágrimas aumentavam, aumentavam os gemidos e os soluços.

Poucos minutos depois, Paulo chorava o pranto dos inconsoláveis.

Seus pensamentos traziam um desespero crescente devido à impotência diante da Realidade.

Seguindo os passos de uma abjeta gradação, Paulo chegava ao limite da insanidade.

Paulo agora gritava.

Gritava com uma insistência arrepiante. Gritava e debatia-se com uma obsessão de causar medo.

Porém não gritava qualquer coisa, gritava por um nome. Gritava por alguém que, provavelmente, não poderia ouví-lo.

 

Há quinze anos atrás, seu irmão gêmeo, Pedro, havia, sem explicação abandonado tudo e a todos.

Permanecera desaparecido durante anos.

Paulo foi revê-lo uma última vez, numa foto de jornal de uma cidade do interior: Pedro, com um aspecto que beirava o irreconhecível, como o mais pobre dos diabos, comia algo que parecia ser bem pior do que lixo, cercado por ratazanas obesas e por todos aqueles repugnantes seres do mundo inferior, numa paisagem para além de apocalíptica.

Os esforços de Paulo a fim de encontrar Pedro foram, desde então, inúteis.

Logo, todos os anos, ele vivia um dia como seu irmão gêmeo. Primeiro, como uma tentativa de encontrá-lo, estando dentro de seu triste mundo. Segundo, como uma espécie de homenagem, como uma demonstração de respeito a uma das pessoas que mais amou na vida.

 

Era dia 9 de março de 1985 e, naquele dia, Pedro, em algum lugar, completava 27 anos.

J. D. Borges