Carta ao Álvaro

Estimado Álvaro,

Você deve ter notado que esta carta não possui um remetente claro; consequentemente, deve estar se perguntando quem diabos sou eu. Infelizmente, esta é uma pergunta a qual não posso responder de imediato.

Peço, então, encarecidamente, que você por favor não interrompa a leitura, chegando até o final desta que tens em mãos.

É absolutamente necessário que você leia "every single word" desta carta. (Por mais que algumas passagens te pareçam absurdas, irreais até, tenha sempre em mente que quem te escreve não está louco.)

Esta carta vem do Futuro, vinte anos à frente da tua época.

Este processo, de enviar correspondência ao Passado, foi descoberto há muito pouco tempo. Existem infinitas utilidades... (Você mesmo, neste momento, deve estar imaginando algumas.) Todas elas partem do mesmo princípio: advertir determinadas pessoas sobre o "porvir", para que as mesmas possam evitar ou, ao menos, "suavizar" os infortúnios, as catástrofes, os desastres, etc.

Eu faço parte de um projeto secreto do Governo Federal ligado à regeneração de criminosos. Estou nessa com mais alguns "colegas"; somos, portanto, o que se poderia chamar de "primeiras cobaias".

Trata-se de uma iniciativa nova baseada num princípio velho: "cortar o mal pela raiz". Você deve saber que, para a regeneração de criminosos, as técnicas mais frequentemente utilizadas visavam a supressão das deformações de caráter, das deficiências, das fraquezas, dos traumas, etc. Técnicas que iam desde trabalhos forçados até tratamentos psicológicos. Sem falar na eliminação sumária do degenerado, através da temível pena capital (que, ao meu ver, não regenera ninguém e não resolve coisa alguma).

Ou seja, técnicas posteriores ao ato, posteriores ao mal em si, baseadas num tipo de ação que faz menos por prevenir a ocorrência e mais por corrigir as suas conseqüências. O custo para o Governo Federal sempre foi muito alto, considerando-se o baixíssimo número de regenerados.

A idéia de antecipar e impedir um determinado crime não é nova; mas a possibilidade de atingir tal objetivo, com uma considerável chance de sucesso, é inédita. Através da correspondência enviada ao Passado, o crime seria evitado no nascedouro.

Surgiram, então, os questionamentos sobre como proceder: a correspondência "terapêutico-preventiva" (chamemo-la assim) seria endereçada a quem? Ao delinqüente em potencial? a seus parentes? às pessoas ao seu redor? ou a todos juntos? Em que época da vida do transgressor a correspondência deveria chegar? um mês antes do crime? um ano antes? ou décadas antes? Seria escrita por quem? psicólogos? advogados? parentes? amigos? E por fim: alguém realmente acreditaria nela?

As dúvidas eram muitas.

Vidas humanas estavam envolvidas nesse "jogo". Pensando-se nisso, decidiu-se que, para não comprometer inocentes, os primeiros "pacientes" seriam os considerados desenganados, os chamados "hóspedes com estadia vitalícia"; ou seja, os condenados à pena de prisão perpétua. (Chegou-se, obviamente, a cogitar os condenados à pena de morte, mas esses, hoje, não têm muito tempo de vida — ao contrário do que acontecia na tua época.)

Dos "Perpétuos", muitos não quiseram cooperar; muitos riram; muitos não acreditaram na máquina do tempo e na eficácia do tratamento.

(Uma atitude que, a princípio, pode ser classificada como impensada, irracional, em se tratando de pessoas que não têm qualquer outra alternativa que lhes permita readquirir a liberdade. Ao mesmo tempo, é atitude plenamente justificável se considerarmos a progressiva perda da sanidade por parte desses indivíduos. )

Dos outros, dos que se conservaram sãos, posso te dizer que viram uma luz, uma possibilidade e acreditaram nela cegamente; investindo tudo, cooperando ao máximo.

Álvaro, um desses sou eu.

Agora, você pergunta: mas o que é que eu tenho a ver com tudo isso?

Como eu te dizia, a quem endereçar as cartas? Em cada caso, adotou-se um procedimento. (Acredita-se que ainda não exista um método padrão a ser adotado.)

No meu caso, optou-se pela notificação de apenas uma única pessoa, — aquela com envolvimento direto —, quer dizer, o criminoso em potencial.

Logo, esta pessoa é você. E eu sou você daí a vinte anos.

É provável que, neste ponto, você não acredite mais em nada. (Pode apostar que eu faria o mesmo.)

Pelo que me lembro de mim há vinte anos atrás, você, em lugar de ter se assustado, deve ter caído na gargalhada.

Realmente tens uma boa quantidade de motivos para rir: és casado com uma das mais cobiçadas e invejadas mulheres da sociedade: Paula Soares Bittencourt; sua rede de restaurantes, a Fast & Food, em sociedade com o Mauro Pinheiro, acaba de inaugurar a décima-primeira filial; Antonio Carlos, teu filho, estuda fora do país; vão todos passar o final de ano num château ao sul da França, não é verdade?

Eu, particularmente, não teria do que reclamar.

É justamente neste momento de paz e de bonança que eu devo te alertar, que eu devo te orientar "ao longo do caminho". Portanto, eu apareço antes que o processo se inicie — algo bastante razoável, não acha? Vivendo no País das Maravilhas, é natural que você considere impossível este Futuro nefasto, no qual eu vivo.

Talvez você tenha razão, mas o impossível torna-se possível a partir de pequenos e tímidos passos.

Álvaro, nesta carta não está o mapa da mina. Aliás, seria muita imprudência da nossa parte (digo nossa pois estou sendo acessorado pelo doutor David O’Brian) fazer referência a tudo o que vai e pode acontecer, logo num primeiro contato, não é verdade? Outras cartas virão e o processo seguirá em doses homeopáticas. Se você chegou até aqui, sei que vai lê-las.

A próxima carta chega daí a exatamente uma semana. Como saber se você está lendo? Bem, o doutor O’Brien diz que todas e quaisquer mudanças poderão ser detectadas graças a "incursões" no meu subconsciente. Até daqui a uma semana,

Álvaro do Futuro.

O Álvaro do Futuro terminou de escrever aquela carta à tarde, num dos muitos intervalos para descanso depois do almoço. Releu o último parágrafo várias vezes e pôs-se a pensar: seria aquilo mesmo?

Na verdade, o doutor O’Brian e sua respeitável equipe não pareciam ter muita certeza sobre a natureza das mudanças cerebrais, corporais ou quaisquer outras pelas quais ele, Álvaro do Futuro, passaria.

Apesar da postura impávida, sisuda e destemida dos médicos, havia sempre espaço para um pouco de incerteza no ar.

As teorias sobre as influências do Passado no Futuro eram inúmeras. Entretanto, o que aconteceria realmente? O que uma carta como aquela poderia provocar na chamada "linha do tempo"?

Suponhamos que o Álvaro do Passado seguisse à risca os conselhos. Então, ele nunca descobriria sua esposa Paula "muito à vontade" com o seu sócio Mauro; então, ele nunca cometeria os homicídios; então, nunca seria julgado, condenado e preso. Seguindo esta lógica, a vida na prisão deixaria de existir; passando à categoria das coisas que poderiam ter sido mas que nunca o foram.

Álvaro do Futuro começou a pensar na vida na prisão.

Pensou nos amigos que fez ali; tudo bem que eles fossem o "Lixo da Sociedade". Pensou nas conversas. Pensou nos livros que leu. Pensou nas visitas que recebeu. Pensou até nas festas de aniversário na cadeia.

Pensou nas incontáveis meditações. Pensou em como redescobriu o Mundo. Pensou na alegria das coisas simples. E pensou na sua condicional, "se Deus quiser", dali a alguns anos.

Depois pensou que tudo isso iria, de alguma forma bizarra, deixar de existir. Pensou em ser mais uma dessas coisas; que poderiam ter sido mas que nunca o foram.

Pensou em ir se desintegrando semana a semana, à medida que houvesse uma evolução do tratamento com o Álvaro do Passado. Pensou em ir ficando transparente... até sumir por completo (!), como no filme "De Volta Para o Futuro"...

Incolor, insípido e inodoro. No entanto, em pior situação do que a água, porque a água (ainda que insípida, incolor e inodora) fazia parte da distinta categoria das coisas que EXISTEM!

Como seria a sensação de, aos poucos, deixar de ser matéria? Como seria a transformação em "anti-matéria"? E a vida no Limbo, que tal? Ou seria no Vácuo?

Álvaro do Futuro pensou em morrer, simplesmente. Pensou em deixar de ser; ou melhor, pensou em nunca jamais ter existido.

NUNCA JAMAIS TER EXISTIDO.

O Álvaro do Passado nunca chegou a receber a carta.

Como o Álvaro do Futuro, os presos que ponderaram um pouco mais sobre as conseqüências das intervenções no Passado desistiram do projeto. Dos outros, dos que continuaram no experimento, nunca se soube mais nada.

Nem no Passado. Nem no Futuro.

J. D. Borges