A Baranga do Shopping

Sábado, depois do almoço.

Resolvi cuidar da minha perna atropelada durante o Carnaval. Não atropelada no sentido literal da palavra, atropelada "em termos". Quando eu falo em atropelamento, você logo pensa em carro passando por cima de alguém ou de alguma coisa; não é bem esse o caso.

Na noite de quarta-feira de cinzas, estávamos todos no mirante, em Belo Horizonte, admirando. No mirante admirando... Eu e Fê tocávamos violão sentados no meio fio. Os outros se empanturravam de cachorro-quente, pipoca, cerveja, refrigerante, ou alguma outra coisa que era vendida num daqueles carrinhos típicos.

Alguém sugeriu o toque de recolher e, na hora da partida, enquanto eu e Fê levantávamos, o carro atrás de nós "pulou" em direção ao carro à frente de nós. Fez-se, então, o seguinte sanduíche: pára-choque perna perna pára-choque.

Imagine um sujeito fechando as pernas depois de um chute no saco. Pois é, imagine agora o movimento sem o chute. Este sujeito sou eu; ou melhor, naquele contexto, era eu.

E era o Fê também, claro. Isso graças a um carro engatado e a um motorista desligado que deu a partida e bum! Aliás, acho que foi mais que bum!, foi BUMM! Lembro-me pelo susto indescritível e pela dor iminente:

— Ai! Ai minha perna!

— Nossa, que cagada! Desculpaí, não conferi! Putz... Tá doendo muito?

Até que tava, viu? Mas achei que fosse assim mesmo... Garantiram-me que a dor passaria em dois ou três dias "no máximo!" No entanto, mais de uma semana depois, lá estava eu, naquele sábado, pensando em fisioterapia de/para leigos: andar a pé.

Iria até o shopping — uma caminhada de aproximadamente dez quadras. Insistiria mais um pouco com a perna antes de consultar o doutor.

O shopping, como pode parecer a princípio, não era uma escolha despropositada. Nele, eu resolveria uma outra questão pendente: a das fotos do Carnaval, que eu copiaria e enviaria a amigos e "amigas". (A estas logicamente as mais bonitas!) Como o tal shopping era provido de uma filial do "Revelações Uma Hora", pretendia eu unir o útil ao agradável. Quer dizer, por enquanto, uniria o útil ao útil: Fisioterapia + Fotos. O agradável viria (vem) a seguir...

Faltava pouco mais de uma quadra para eu chegar ao shopping quando Ela surgiu. Surgiu tão repentinamente que eu não pude precisar de onde exatamente Ela veio. O fato é que Ela surgiu.

Surgiu, e era uma baranga.

"O que é uma baranga?" — você pode perguntar. E eu me vejo obrigado a abrir um parêntese, pois é difícil fornecer uma definição abrangente e ao mesmo tempo sucinta sobre o "conceito" de "baranga". O engraçado é que, na prática, não é preciso muita análise para identificar uma baranga. Aponte uma moça qualquer na rua e eu te digo na hora: — "É baranga!". Ou, então: — "Não é baranga!" Just that simple! Claro que entre duas pessoas há controvérsias; muitas controvérsias. Uma baranga para mim pode não ser uma baranga para você; mas isso é problema seu. Brincadeira! O contrário também pode acontecer. Mas voltemos à "definição".

Uma mulher "feia", na minha concepção, é uma mulher desagradável a todos os sentidos: visão, paladar, tato, olfato e audição. A baranga não, a baranga é uma reprodutora, a baranga é, por definição, uma "gostosa", apesar de não ser uma mulher bonita. A baranga é a "feinha" que "passou raspando" no exame de seleção natural de Darwin. E a baranga — isto é importante — sabe do seu altíssimo potencial para a cópula; de tal sorte que ela se veste realçando os seus atributos físicos: usa geralmente trajes colantes, decotados, provocantes, indecentes, fosforescentes, fluorescentes e outros tantos "entes" que agora não me ocorrem. Atrai com isso os olhares dos machos de plantão (quando não os próprios, em pessoa). Concluindo: ao ver uma baranga, você só pensa em sexo, jamais em namoro ou amizade.

Ela usava uma calça de lycra preta. Daquelas agarradas. E eu poderia jurar que eram de borracha, devido à sua incrível aderência. Motivado pela forma de suas pernas e seguindo no sentido ascendente, indaguei-me, como não poderia deixar de ser, a respeito da forma de seu traseiro. Do ângulo em que eu me colocava — estávamos lado a lado — era impossível responder com um mínimo de precisão aceitável. Como naquele filme, a pergunta não queria calar e acabou me vencendo. Então, com muita classe, parei e fingi observar alguma coisa do outro lado da rua, deixando que Ela me ultrapassasse.

Lembro-me de tê-la visto requebrando bastante. A bunda, em si, era mais ou menos. Não passava nos meus prerequisitos de volume, proeminência e terceira dimensão, mas também não chegava a ser repugnante; e nem desprezível.

Descobri, voltando ao seu lado e seguindo, com os olhos, ainda no sentido ascendente, o que motivaria a minha investida.

No tocante ao tronco e aos membros superiores, Ela usava duas camadas de roupas "rendadas", pretas e dotadas de uma transparência que classifico como instigante. Tomado por aquela visão que me hipnotizava e possuído pelas forças incomensuráveis da Mãe Natureza, eu decidi que tentaria agarrar e beijar aquelas duas formas gêmeas, redondas, empinadas, bicudas. Para isso eu estava disposto a tudo, utilizaria de toda a minha astúcia, de todo o meu ardil; recorreria a toda sorte de manhas, artimanhas, logros, trapaças, burlas... Bem, você sabe do que eu estou falando.

Mesmo assim, veja o seguinte: Mesmo assim, eu pensei um pouco. Porque uma baranga não é exatamente o tipo de pessoa com a qual você quer ser visto num shopping center ou em qualquer outro lugar público, onde você pode encontrar parentes, amigos, vizinhos, ex-colegas, ex-vizinhos, inimigos, ex-inimigos, sogras, ex-sogras e segue uma lista de pessoas que tenham visto o seu rosto ao menos uma vez na vida, não importa. Se você for visto, seja por amigo, seja por inimigo, terá problemas.

Eu adoraria dizer que, na melhor das hipóteses, você passa despercebido, porém não existe "a melhor das hipóteses" se alguém que te conhece (mesmo que você não o conheça) te pega com uma baranga. Digamos que, "na menos pior das hipóteses", você vai ter de agüentar gozações/comentários de pessoas/indivíduos insistentes e inconvenientes. Você pode até estar arrependido ou pode até ter esquecido de como era a baranga — não interessa. Não interessa porque o desgosto e a "perda da memória" são comuns nesses casos, não provam a sua inocência. Por mais que sejam profundos e verdadeiros não te salvarão desta vez.

"E na pior das hipóteses?" — você pode me perguntar. Bem, para "a pior das hipóteses" não existem limites: ou perde-se a chance com aquela garota especial e nem um pouco baranga; ou perde-se a moral com os amigos (correndo-se o risco de ganhar aliados "barangueiros" como você: — "Bem-vindo ao clube!"); ou perde-se a moral com um membro da sua família; ou perde-se a moral com alguns setores da sua família; ou perde-se a moral com a família inteira; ou perde-se a família (inteira).

Como ponderar entre a glória e a ignomínia? O gozo e o ostracismo?

 

Olhei mais uma vez para Ela. Três constatações inegáveis vieram à tona. A primeira: Ela era gostosa. A segunda: eu não iria conseguir nada melhor naquele sábado à tarde. A terceira: foda-se o resto!

Ela não olhava para mim, mas murmurou alguma coisa que eu interpretei como um sinal verde.

— Cê tá indo pro shopping? — comecei.

— Não sei.

— Pra onde cê tá indo então?

— Não sei. Não sei se vou pro shopping ou pra esse outro lugar. Tô pensando... E você?

Contei sobre a perna, as fotos e terminei com:

— Vem comigo!

— Tá bom. — disse ela, sentindo-se levada pela maré. Disse ainda que se chamava Maria da Graça, mas que lhe chamasse só de Graça. De Graça.

Morava numa travessa da minha rua e vinha às vezes ao shopping, "pra distrair". Sei. Distrair...

— Graça, cê tem quantos anos?

— Vinte e cinco. E você?

— Quantos você acha? — sempre faço esta pergunta e aconselho você a fazer o mesmo. As mulheres, ao responderem à mesma, sempre revelam a idade que elas gostariam que você tivesse. Ou seja, deve-se ouvir a resposta e concordar com elas.

Além do que, elimina-se a dúvida do "Ah! Ele é muito mais velho!" ou do "Ah! Ele é muito novinho!" Portanto, mesmo que a avaliação delas produza uma resposta absurda, procede-se da seguinte maneira:

— Parabéns, você adivinhou! — e aproveita-se para pegar na mão da interlocutora, usando a desculpa do "parabéns! como você conseguiu tal façanha?". Funciona e a rapariga fica contente, pensando ter acertado.

Logo em seguida comentei:

— Adoro mulheres mais velhas...

— Você gosta de mulher mais experiente?

— Claro, quero aprender. E você? gosta de homens mais novos?

 

Entramos no shopping e eu, fingindo dor na perna, sugeri que sentássemos um pouco nos bancos da entrada. Eu, na verdade, queria tentar as primeiras aproximações, os primeiros contatos físicos interessantes e, quem sabe, um primeiro abraço; meio de lado, é verdade. Como havia muita gente passando por ali, apenas passei a mão pelos seus cabelos e pelo seu rosto, enquanto perguntava sobre aqueles lugares comuns: escola, trabalho, família, etc.

Toquei de leve na sua nuca e dei uns apertões no seu joelho graças ainda à desculpa da perna (queria "saber" se a minha estava muito inchada comparada com a dela).

Dali seguimos para a loja de Revelações Uma Hora. Pedi a Graça que me esperasse num banco próximo, uma vez que o balconista da loja me conhecia. SEM ELA, eu não correria o risco de ser visto COM ELA — o que se converteria em infâmia, na certa.

No fim das contas, fui atendido por uma balconista, nova no estabelecimento, que veio cheia de piadinhas... (logo num momento em que eu já estava acompanhado!) Em cinco minutos estava resolvida a questão das fotos. Sobrava a questão da baranga. Eu caminhava para Ela enquanto pensava em como, quando e onde "fazer".

A lotação do shopping ameaçava a minha reputação a todo o tempo. Qual era a melhor maneira de esconder-se de toda aquela gente e, ao mesmo tempo, agarrá-la?

Como eu não estava de carro e, portanto, não poderia levá-la a um lugar escuro, deserto e afastado, a melhor solução era o consagrado e tradicional "escurinho do cinema".

— E aí? Vamos ao cinema? — assim mesmo, em português correto, para impressioná-la.

— Cinema? — ela calou-se por uns dez segundos e, com afetação na voz e no rosto, soltou:

— Que tal Êndi Garcia? — agora era ela querendo me impressionar. Senti uma vontade enorme de rir, beirando o incontrolável.

Imagine só! Uma baranga daquelas querendo passar por entendida em cinema! Era demais! Dei gargalhadas histéricas dentro da minha cabeça. "Que tal Êndi Garcia?" — aquela eu teria de memorizar, ninguém acreditaria quando eu contasse, morreriam literalmente de rir.

— Vamos lá ver o que está passando.

Sugeri e fomos.

Aproveitando-me do fato de que os cinemas davam para a saída do shopping, propus que saíssemos para "cortar" caminho — a maior balela do ano.

Demos a volta por fora e eu salvei mais uma vez a minha honra.

Vendia-se tickets para as três salas mais próximas. Qual filme escolher?

Não havia Andy Garcia — o que era pura sorte —, uma vez que isso poderia reverter em uma sala lotada, onde eu não poderia tomar nenhuma iniciativa mais ousada com relação à Graça.

Sem bem que eu não me incomodo com os espectadores nesses casos. A platéia, quando completamente desconhecida, não me inibe.

 

Isso me faz lembrar das minhas inumeráveis e inomináveis estrepolias em público. As minhas parceiras é que costumavam ficar um pouco incomodadas, dizendo a todo momento:

— Pára, pára! Tão olhando! Tão olhando pra cá!

Eu, levantando a cabeça, topava com um ou dois rostos curiosos e nada mais; não me intimavam ou preocupavam.

— Ah! tão olhando porque tão com inveja! — eu justificava. A parceira ria e eu prosseguia nas minhas atividades.

As mais temerosas ainda comentavam:

— Mas não param de olhar!!

— É inveja, é inveja... Vem cá... Mmmmm...

Falo na inveja porque houve uma época em que eu fui unica e exclusivamente voyer e desejei, em todas as ocasiões, estar no lugar do rapaz que, bolinando a moça, arrancava-lhe gemidos deliciosos.

Eu ansiava pela minha hora e, claro, morria de inveja.

 

Voltando à porta do cinema, um dos filmes era uma comédia com quatro ou cinco atores famosos. A fila era a maior de todas — fora de cogitação.

Do lado oposto vi um cartaz muito sugestivo, retratando o que parecia ser uma cena de sedução. Cinema 3 — "é nesse que eu vou". Cheguei no guichê onde lia-se: "Não é recomendado para menores de 14 anos." Uau, perfeito!

Abri a carteira, o dinheiro não era suficiente! Apelei para a Graça, que como muitas moças (inclusive as mais finas e mais bem educadas), fingia-se de desentendida ao sentir que era hora de pagar:

— Cê tem cinco reais?

— Deixa eu ver... Ih! Esqueci minha carteira!

Teria eu de pagar com cheque, e sabia que poucos cinemas aceitavam. Adeus escurinho... adeus Graça... adeus... adeus...

— Vocês aceitam cheque? — arrisquei desiludido.

A senhora do guichê, pela cara que fez, não sabia responder. Foi consultar não-sei-quem e deixou-me na aflição.

"Todos esses riscos, pra nada!" — eu lamentava em pensamento. A Graça olhava os cartazes com aquele olhar vago, como se não soubesse ler.

Voltou a senhora:

— O cheque é daonde? É daqui?

— É.

— Então aceita.

Viva!

A sala 3 era a menor das menores salas que já visitei. E agora? Não havia um fundão específico que proporcionasse a privacidade necessária.

— Nossa! O cinema é muito pequeno! Vamos sentar na última fila. Qualquer outro lugar é muito perto da tela. — esse era eu, exagerando.

Sentamos.

Eu, pegando nas mãos de Graça, lançava-lhe aqueles olhares maliciosos. Ela sorria sem graça, bancando a inocente. Comecei a elogiá-la, beijando o seu rosto. A outra mão, a do lado oposto, passava pela nuca, pela orelha, pelos cabelos. Fui descendo com a boca até o pescoço, quando ela exclamou:

— Calma! ainda nem começou o filme! Espera apagar a luz... — Depois da "bronca", ela veio aquela risadinha de cúmplice. Afinal estava querendo o mesmo que eu.

— É mesmo, você tem razão. Nem apagou a luz...— era eu me recompondo.

Esperei. Afinal não custava esperar, Ela não iria fugir e eu teria duas horas. Duas horas!

Veio a escuridão e eu parti para os beijos mais ousados. Se eu quisesse mais do que aqueles contatos primários, teria de beijá-la na boca. Para mim não seria tão duro assim.

O surpreendente, no entanto, foi Ela não querer!

Achei estranho e pensei que as minhas mãos, sem o beijo, não avançariam muito mais. Insisti mais um pouco, chegando a apelar para a força bruta. (Algumas mulheres gostam de medir forças, como que para ter certeza de que estão diante de um homem. Ou de um rato.)

Simulando indignação, pois Ela não cedia, afastei-me um pouco, fingindo indiferença.

— Se é assim, então tchau! Se você não gosta de mim, tchau! — era eu "decidido".

— Não, peraí... Vem cá!

Graça passou as mãos pelos meus ombros e abraçou-me como pôde. Com uma das mãos começou um movimento divertido e pitoresco: cutucava de leve, por sobre a camisa, o bico do MEU peito. Uma carícia rara e sugestiva.

Resolvi fazer o mesmo, só que com o DELA.

Ela deixou e começamos a nos entender bem.

Muito bem...

Salvo algumas interrupções do que deveria ser o "lanterninha" — que vinha verificar a quantas andava o filme, ou a quantas andávamos nós: Eu e a Graça.

A primeira aparição dele foi, para nós, um susto. A recomposição foi quase que imediata.

As aparições subsequentes foram deixando de ser surpresa e no final havíamos desenvolvido técnicas que encobriam a nossa movimentação, por vezes, frenética.

J. D. Borges