"Wilde" — A Movie of Great Importance

Ainda que se incorra em reducionismo, é possível dividir os filmes de hoje entre "literários" (aqueles em que predominam os diálogos e as sutilezas do jogo de palavras) e "televisivos" (aqueles em que predominam a forma, a música e a plasticidade). Finda a sessão, dos "televisivos", pouco ou quase nada sobra: uma fotografia, uma trilha sonora, um belo animal, uma sensação momentânea, uma imagem forte. Dos literários, não obstante, retém-se invariavelmente algo: uma frase, uma situação, um sentimento, uma história inquietante, um savoir-faire, uma verdade qualquer.

"Wilde", de Brian Gilbert, com o glorioso Stephen Fry no papel principal, pertence à, digamos assim, escola literária de cinema. Apesar de biográfico, transcende a tumultuada vida pessoal-sentimental do celebrado escritor irlandês, para bulir na hipócrita aristocracia inglesa do final do século XIX, no "amor que não ousa dizer seu nome", na fundação e na erosão de um grande artista, na caracterização de uma época e na personificação de uma das figuras mais atuais de todos os tempos: Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde.

Porque "Wilde" reconstitui boa parte dos absurdos que culminaram na acusação, no julgamento e na condenação de um dos imperadores da língua inglesa; porque "Wilde" trata do homossexualismo de uma maneira franca e adulta, sem apelar para estereótipos grotescos ou distanciamentos moralizantes; porque "Wilde" encena vivamente as convulsões de uma relação irresistível, fatal e inescrupulosa; porque "Wilde" retrata seu Dorian Gray com diligência e zelo: sem afetações e sem figurinos pomposos; sem concessões empobrecedoras ao homem (em detrimento da obra); sem desvinculá-lo de seu habitat natural e de suas funções sociais (de pai, marido, filho, etc.); sem caracterizar o gênio como um ser exótico, incompreensível e indelicado; sendo, enfim, literariamente fiel ao seu homenageado.

O roteiro de "Wilde" toma como base muitos dos registros que o próprio Oscar fez da sua passagem. Dentre eles, destaca-se "De Profundis", carta-relato confessional dos tempos de prisão, em que o habilíssimo dramaturgo procura evitar o reencontro com seu ruinoso amante, lorde Alfred "Bosie" Douglas, enquanto lhe passa um severíssimo pito. Existem trechos esplêndidos; aplicáveis, inclusive, à toda sorte de companhias inoportunas que empatam a criação em geral:

"While you were with me you were the absolute ruin to my Art, and in allowing you to stand persistently between Art and myself I give to myself shame and blame in the fullest degree. You couldn't know, you couldn't understand, you couldn't appreciate. I had no right to expect it of you at all. Your interests were merely in your meals and moods. Your desires were simply for amusements, for ordinary or less ordinary pleasures. They were what your temperament needed, or thought it needed for the moment... I blame myself without reserve for my weakness. It was merely weakness... But in the case of an artist, weakness is nothing less than a crime, when it is a weakness that paralyses the imagination..."

Ah, o Amor. Subjugando sempre os maiores monumentos de racionalidade, equilíbrio e lucidez. Estudiosos do bardo de Dublin se debruçaram com afinco sobre o tema e tiraram lá suas conclusões; não muito convincentes, é verdade. Em vez de explicar as motivações que o levaram ao fracasso, tratam de classificá-lo como auto-destrutivo, fraco, covarde, impotente. Ou seja, ficam no diagnóstico, sem maiores pistas sobre a doença.

Approposito desse tópico, "Wilde" nos traz seqüências memoráveis, como a que um Oscar acamado, febril, doente, implora por um copo d'água, no momento em que Bosie vem requisitar-lhe dinheiro (para mais um de seus ociosos affairs). De seu endiabrado pupilo, recebe nada além de bárbaras humilhações, muita gritaria, quebra-quebra e outra ameaça de abandono (que se cumpre por um curtíssimo intervalo; infelizmente). Lembra o Salai, de Leonardo (discípulo preferido, presente nos manuscritos do mestre). Lembra o tirânico Rimbaud de "Eclipse de uma Paixão", vivido por outro Leonardo, de Caprio. (Ainda imberbe, o prodigioso poeta desfaz o casamento e a vida de Paul Verlaine, sua admiração-mor, pelo simples prazer de escravizá-lo. Enche-se dele em questão de meses, atirando-o na fossa da esterilidade.) Quais os mecanismos e quem são esses fascinantes indivíduos que dominaram tamanhas personalidades?

Tão intrigante quanto, é a placidez com que Oscar se entrega a seus executores afaimados. Tal qual Sócrates, não quis saber se a sua sentença era injusta e/ou ignominiosa; recusou firmemente o pedido dos inúmeros suplicantes que planejavam sua fuga para outro país da Europa. Abraçou, outrossim, seu destino, bebendo também sua dose letal de cicuta.

Coincidentemente ou não, foi igualmente enquadrado como "corruptor dos mais jovens", fazendo, não por acaso, uma defesa de sua conduta, de suas peças e do amor grego clássico. Na composição desse quadro, do passo-a-passo do julgamento, tem o filme um de seus ápices, provando que Wilde, além de escritor formidável, foi também um orador extraordinário. Que ninguém esqueça de suas frases irretocáveis.

Para arrematar, "Wilde" humaniza a pessoa de Oscar, mostrando sua afeição contida pela esposa, sua ligação eterna com os filhos e seu respeito atento para com a mãe. Sem a costumeira tendência de querer pintar os homens de gênio como misantropos incuráveis, como obstinados insensíveis, como agentes cruéis e hostis aos laços de parentesco, de amizade, de amor fraterno e filial.

"'I have many beautiful flowers,' said the Selfish Giant; 'but the children are the most beautiful flowers of all.'"

Mil vivas a Oscar. Mil vivas a "Wilde".

J. D. Borges