A Gula Portentosa de Luis Fernando Verissimo

Está nas lojas, a mais nova incursão literária de Luis Fernando Verissimo, expoente máximo da crônica de costumes da middle class tupiniquim. Terceiro lançamento da série "Plenos Pecados", "O Clube dos Anjos" saciará igualmente gourmands, fãs do escritor e aficionados pelo gênero policial.

Quem leu Verissimo, sabe da sua habilidade em criar narrativas cômicas e de mistério; vide as peripécias do já antológico detetive Ed Mort. Espectadores mais atentos e mais experimentados terão, na mesma medida, percebido sua especial predileção para temas culinários e/ou relacionados a mesas-de-bar. Mantidos esses ingredientes, adicionadas as costumeiras doses de elegância, erudição e bom humor, chegamos a este modesto e saboroso volume de pouco mais de 100 páginas — que pode muito bem ser devorado em uma sentada; ou melhor, garfada.

Resumindo a ópera. Era uma vez o "Clube do Picadinho". Uma instituição sem fins lucrativos, voltada para a satisfação gastronômica de seus associados. Promovia encontros e performances de chefs e pratos os mais disparatados, incluindo excursões ao Velho Mundo para reciclagem e aprimoramento de técnicas e paladares. Passados vinte e um anos, e sofridas as devidas pressões e intervenções (por parte de amantes, esposas, curiosos e namoradas), ocorre a desagregação da confraria e a quase extinção de seus rituais. Eis que surge Lucídio. É através de sua figura, enigmática e ardilosa, que se dá o resgate do brilho e do entusiasmo das reuniões de outrora. Trata ele de conquistar cada um dos ventripotentes membros da irmandade, pela feitura de seus pratos prediletos, em jantares mensais; deixando, sempre, uma última e fatal porção a cargo dos gulosos. Porção que terminará por matá-los.

Mas não se preocupe, o prazer não está em desvendar o enigma supracitado. Contrariando as expectativas da platéia, o desfecho e a identidade do criminoso são revelados logo de cara, no capítulo inicial. Pois, como afirma uma das personagens, "a única maneira inteligente de ler uma história policial é começar pelo fim". Então irrompe o que a novela tem de mais notável: mesmo conhecendo o conteúdo da derradeira página, o leitor não se decepciona; a engenhosidade da obra é tal, que mantém o deleite dos mais exigentes em níveis bastante elevados. Ademais, que importa saber quem são os condenados? Estão todos no mesmo barco: "Ramos disse que a nossa vida era uma história de assassinato mal contada, sem as simetrias e as epifanias da arte. Sabíamos quem era o assassino desde o início. Ele nascia conosco. Nascíamos ligados ao nosso assassino... Tínhamos as mesmas fomes e as mesmas fraquezas e cometíamos os mesmos pecados."

Sem apelar para a metafísica exacerbada ou o psicologismo de fundo-de-quintal, o romance também discute, ou deixa sugeridas, algumas questões fundamentais. Tome-se o caso da gulodice, da fome, da lambiscaria: "Não é todo dia que se quer ver um pastoso Van Gogh ou ouvir uma crocante fuga de Bach, ou amar uma suculenta mulher, mas todos os dias se quer comer, a fome é o desejo reincidente, é o único desejo reincidente, pois a visão acaba, a audição acaba, o sexo acaba, o poder acaba mas a fome continua..." Assim, com suavidade, elaboram-se raciocínios instigantes e agradáveis; entretendo os que clamam por profundidade.

Permanecem, como pontos fortes do escritor, os diálogos (representação acurada e ímpar de algumas das nossas corriqueiras realidades) e as mulheres (com aqueles nomes formidáveis: Lívia, Gisela, Mara, Norinha e Verônica Roberta). Sempre muito afiado nesses quesitos, Verissimo nos brinda com passagens como a que segue abaixo:

"— Estou aborrecendo você?
— Não, não.
— Histórias de amor são aborrecidas. Principalmente histórias complicadas de amor.
— Não, não.
— A infinita variedade do comportamento humano não tem o fascínio que dizem. É, sim, a causa de todos os nossos aborrecimentos.
— Sei.
Eu não estava confortável no papel de confidente do Ramos. Por que eu? Como tinha compulsão de falar, não era um confidente confiável."

Contrapondo-se às personas femininas, as masculinas mostram-se frágeis, pusilânimes e influenciáveis. Machos seguem ladeira abaixo. Entregam-se ao seu executor sem relutância; ceifados um a um, como se a carnificina fosse inevitável; como se ela pudesse redimi-los de seu passado de dissipadores e de cultores do ócio; como se ela pudesse beatificar suas almas pelo supremo prazer da gustação, da deglutição, da digestibilidade.

Interrogações levantadas: existem limites para o desejo? há como resistir ao seu chamamento? os insistentes convites da tentação podem ser debelados? nem mesmo pela ameaça de morte? Com a palavra, Luis Fernando Shakespeare: "O homem é o único animal que sempre quer mais do que precisa. O homem é o homem porque quer mais." Com a palavra, a possível máxima japonesa de porto-alegre: "Todo desejo é um desejo de morte."

Não resta dúvida, o livro fala por si só. E o autor, apresenta-se em sua melhor forma. (Cá entre nós, deveria investir com mais freqüência no formato longo e elaborado.)

Entrementes, você, leitor, deveria dedicar a "O Clube dos Anjos", algumas horas. Vale à pena, e custa bem menos do que qualquer refeição merreca fora de casa.

J. D. Borges