Ruy Castro e a Mistificação do Rock

Ruy Castro, carioca da gema, natural de Minas Gerais, consagrado periodista bossa-nova, historiador e autor de "Chega de Saudade", biógrafo e benfeitor do espólio jornalístico de Nélson Falcão Rodrigues, futebolista censurado, narrador das peripécias e das desventuras de Mané Garrincha, enciclopedista e amante de Ipanema, entusiasta e saudoso do mais americano dos séculos, colecionador de frases e de antologias de mau humor, — craque da cultura popular que se fez nos Estados Unidos do Brasil da América.

Além de abraçar a nobre tarefa de enaltecer e cultivar o que, na sua opinião, há de mais sublime nas primeiras seis décadas deste twentieth century, vez por outra, Ruy Castro distribui saraivadas de impropérios contra aqueles que considera responsáveis pela deterioração e pela decadência do pensar e do criar jazzístico, bossa-novístico, cinematográfico, ludopédico e impresso.

No último sábado, retornou ao Rock — um de seus alvos prediletos.

Embora inquestionavelmente elaborado e bem escrito, seu artigo insiste num viés estético que pouco ou nada tem a ver com a extensão e com a permanência do fenômeno do Rock'n'Roll. Se pretende salvar a trilha sonora do século que se avizinha, conforme anuncia, Ruy Castro deveria adotar um approach mais mercantil, mais cínico, — suficientemente desvinculado da técnica e do feeling.

Em primeiro lugar, Rock não é ditadura. Do ponto de vista do público consumista, nunca houve gênero mais democrático, mais acessível. Afinal, qualquer um pôde compreender, professar, executar, compor e inventar rocks. Nenhum estilo permitiu a aproximação e a apreciação de tantos "não-iniciados". Nenhum estilo viu igual proliferação de músicos e de compositores. Nenhum estilo garantiu a instrumentistas e ouvintes absolutamente medíocres tamanha satisfação. Eis a razão suprema para o alastramento e para a permanência dos rockers; razão que precede qualquer suposto "esquema" de gravadoras e da mídia em geral.

Em segundo lugar, desde os Anos Sessenta, que os "jovens" vem se tornando o maior público consumidor de tudo o que existe — provocando uma reviravolta em todos os setores da economia. Como conseqüência, a atenção de empresários e criadores voltou-se para adolescentes púberes (ignorantes, rebeldes e agressivos), deixando de lado o antigo público "adulto" (exigente, fino e bem educado). Assim não são os "jovens" que tradicionalmente perseguem o Rock, é ele que procura se adequar à sua imberbe freguesia.

Em terceiro lugar, é muito menos custoso lançar, produzir e controlar grupelhos cujos sucessos não duram uma única estação, do que lidar com egos do tamanho de catedrais. Não à toa, assiste-se à paulatina extinção dos outrora denominados superstars. Uma banda recém-surgida não requer grandes estúdios, grandes camarins, nem grandes palcos, contenta-se com ambientes despojados (atitude, aliás, amplamente difundida e estimulada dentre esses arrivistas e seu séquito de fanáticos). Resumindo, não foi uma intenção malévola que favoreceu os conjuntos desse tipo de música em detrimento dos heróis de épocas passadas, apenas aconteceu deles (os descabelados emergentes) se mostrarem mais afáveis no trato e mais rentáveis no contrato.

Concomitantemente, o caráter elementar do Rock proporcionou um corte substancial no budget dos investidores. Abandonaram-se orquestras, condutores, cantores, refinamentos e fricotes. Gravações foram agilizadas; mixagens e masterizações, abreviadas; distribuições, facilitadas; turnês, difundidas; sobrando mais dinheiro e mais tempo para divulgação nas rádios e para feitura de videoclipes — a plataforma de lançamentos do amanhã.

Em quinto lugar, o roqueiro não está nem aí para as homenagens (póstumas ou não) que venham a pipocar em revistas, televisões ou jornais. Vive-se para o novo, para o inédito, para o agora, para o que acaba de brotar. Ou seja, não se toma o menor conhecimento de mortes como a de Frank Sinatra; um assunto que as MTVs e FMs da vida jamais irão abordar por mais de trinta segundos. Portanto, uma comparação, em qualquer nível, entre Kurt Cobain e Old Blue Eyes está completamente fora de cogitação, e fim de papo.

Em sexto lugar, os Beatles nunca quiseram comparar suas interpretações de standards com as de outros figurões de Hollywood e da Broadway. Não foi por esse motivo que começaram a escrever suas próprias canções. Fizeram-no porque tinham inspiração, talento e, principalmente, receptividade junto às paradas de sucesso de todo o lugar. A perenidade e as constantes releituras de suas obras estão aí como provas irrefutáveis desse fato. Se as demais gerações de rock'n'rollers, infinitamente menos dotadas do que os Fab Four, resolveram seguir pela mesma trilha — e "estragaram" o songbook planetário —, isso é outra história.

Concluindo, é preciso analisar esse e outros fenômenos com menos ingenuidade e com menos romantismo — longe da lamúria fácil e do fatalismo simplista.

Chega de Saudade. Basta de passadismo.

J. D. Borges