Rubem Fonseca — o espadachim das letras brasileiras

A maior homenagem que se pode prestar à literatura é produzindo mais e melhores livros. E esse princípio vale para todas as demais artes. Quem sabe, faz; quem não sabe, teoriza.

E Rubem Fonseca sabe. Sabe, por exemplo, muito mais do que esses críticos de meia-tigela que vêm atazanar-lhe a bibliografia — com acusações de repetição, de obsessão pelos mesmos temas, de decadência, de falta de brilho, et cetera. Tudo por ocasião do lançamento de seu "A Confraria dos Espadas" — impecável produção do outrora aclamado autor de "Feliz Ano Novo", "Agosto" e "A Grande Arte".

Afinal, convenhamos: um escritor com uma obra consistente, homogênea e qualitativamente uniforme, não piora assim, vertiginosamente; não perde o viço assim, da noite para o dia.

O fato é que o mestre voltou e — como sempre — voltou arrebentando; esbanjando originalidade, talento e estilo. Voltou, como nunca, habilíssimo.

Principiando sua confraria por "Livre-arbítrio", espécie de conto-epistolar em que o suposto assassino justifica sua trajetória de abreviador de vidas. Segundo consta, não faz vítimas, apenas ajuda-as a exercer o que chama de "a maior das liberdades": o direito de acabar com a própria vida. Embute-se aí uma saborosa discussão filosófica que, suprimindo as noções de culpabilidade e criminalidade, legitima brilhantemente as posições e razões íntimas do protagonista; e, mais além, de suas próprias pseudo-vítimas. Diz ele: — "Havia aquelas que se diziam cansadas de viver, mas a verdade é que as pessoas cansadas de viver não merecem morrer, assim como aquelas que têm inclinações suicidas... O livre-arbítrio no ato de encerrar a vida só é autêntico se a pessoa é tranqüila, saudável, lúcida e gosta de viver."

Na seqüência, o atualíssimo "Anjos das Marquises". Narrativa em que são relatadas as agruras de um ex-workaholic aposentado que, após a perda da mulher, vê-se insuportavelmente desocupado, desorientado, perdido. Um drama universal, atemporal, riquíssimo — abordado, como não poderia deixar de ser, com invulgar maestria: — "Paiva pela manhã lia o jornal e depois saía, pois não conseguia ficar dentro de casa sem nada fazer... Também não suportava mais olhar o mar, aquela massa de água tediosa... Conhecia a história de sujeitos que se aposentavam e ficavam felizes em casa lendo livros e olhando videocassetes, ou enchiam o seu tempo levando os netinhos para tomar sorvete ou passear na Disneyworld, mas não gostava nem de ler nem de ver filmes, nunca se acostumara com isso."

Segue-se, então, "A festa". Descrição minuciosa e definitiva da preparação de um evento assaz ornamentado, delicadamente planejado, perspicazmente nouveau riche. Evento que guarda surpresas ineditamente inusitadas, evento que nem a mais trágica ocorrência prejudica, evento pleno em absurdos intrigantes e altamente imaginativos. "Tudo é tão difícil, disse ela suspirando. Lembrou-se do trabalho que tivera para escolher os convidados, selecionados não por serem bons amigos, bons amigos eram convidados para almoçar, o critério fora o da juventude, da beleza, da elegância, do entusiasmo pela vida."

"O vendedor de seguros" revela uma curiosa maneira de ganhar muito dinheiro. Destaca mais uma vez a capacidade do realizador de construir personagens extremamente frios, solenemente indiferentes, descabidos; inescapavelmente humanos, todavia. O universo de Rubem há tempos nos brinda com esses tipos tranqüilos, equilibrados, aparentemente pacíficos, mas que se preciso for detonam a bomba que traz junto o apocalipse. Personagens que compensam sua existência mundana, corriqueira, comezinha com atos de incomensurável violência, temperada com riscos elevadíssimos. E pior, personagens que, como sabemos, existem, perambulam, habitam; vagam por aqui e por aí...

"AA" pode ser considerado o ponto alto da confraria. Suficientemente cético, temperadamente romântico e inventivo, aborda a arte do encontro, e das competições ilícitas envolvendo, nada mais nada menos que, nanismo. Tem como cenário uma vasta propriedade no Pantanal. Assuntos, à primeira vista, díspares, porém que se costuram e que se completam num passo-a-passo engenhoso e irresistível. Ao leitor, resta uma única alternativa: ler esta história do começo ao fim; sem intervalos de qualquer tipo. "Já disse que esperava uma mulher feia de óculos, uma daquelas donas frustradas que não encontram homem e se engajam numa cruzada. Óculos a doutora Suzana usava, mas era uma trintona atraente, a boca um pouco grande, os dentes bonitos e o sorriso simpático e a voz um pouco rouca, mas eu já encontrei mulheres assim que não valiam nada e não caí nessa."

"À maneira de Godard" segue à risca (até demais) o que propõe seu título. Mais estapafúrdio impossível. Como nos filmes de Jean-Luc, tem-se aí um exercício de paciência, em que dois traumatizados do sexo, das genitálias e do prazer, superam suas fraquezas, chegando ao clímax — por meio de artifícios intelectualizados, elevatórios da alma e do espírito; quase como num estudo de laboratório, quase como numa expedição científica. Partindo de Sócrates e terminando no que o homem tem de mais raso e irredutível: seus mecanismos reprodutivos.

E, como era de se esperar, o conto que dá nome ao livro: "A Confraria dos Espadas". Gira em torno de um clube de machões que descobre a cópula quase metafísica; a disposição infindável, infatigável, uma vez que sem resíduos. Elevados à condição de máquinas do prazer, seus membros despertam para novas problemáticas e suas conseqüências, nem sempre positivas. Conclama-se os orgulhosos viris de todas as cores, raças e nacionalidades; bem como os curiosos de toda sorte. Vale à pena conferir.

E, para finalizar, "Um dia na vida de dois pactários" — poema épico em homenagem à fornicação infinita. Bastante breve. Uma experiência. Dele, basta que se diga isso.

Eis então o nosso grande homem, o nosso contista contemporâneo mais altivo. Eis então Rubem Fonseca. Absoluto senhor de sua arte, profundo conhecedor de seu ofício, não teria porque decepcionar quem lhe assiste. Pelo contrário, livre das paixões de outras eras, exercendo domínio completo sobre o próprio instrumento, nos lega perfeições de criatividade e equilíbrio. Irrepreensíveis. Como o bruxo do Cosme Velho, supera-se a cada novo livro.

J. D. Borges