Philip Roth e a Pastoral Americana

Philip Roth, por muitos considerado o maior escritor da atualidade, tem, há pouco mais de um mês, sua "Pastoral Americana" lançada no Brasil.

Pastoral: "tipo de representação dramática, de argumento lendário, que se originou na Itália e preparou a criação da ópera", Aurélio Buarque de Hollanda, o dicionarista.

O Sueco. Seymour Levov. Sua trajetória de sucessos como multiesportista símbolo. Sua carreira profissional como herdeiro de uma promissora fábrica de adereços femininos. Seu casamento modelo com Mary Dawn, Miss New Jersey. Sua paternidade dedicada, pertinaz e compreensiva. Sua filha instável, rebelde, drástica, bombástica — e assassina. Seu desespero como membro de uma família que produziu uma foragida da justiça. Seu desconsolo perante a esposa desequilibrada, insana, perdida. Sua rendição a uma compensação extraconjugal. Sua submissão para com as absurdas exigências de uma emissária de Merry Levov, sua ex-filha. Sua força e sua fraqueza quando do reencontro e da visão do apocalipse. Sua inanição para com a revelação do amante da mulher de sua vida. Sua pusilanimidade diante da decadência, das reviravoltas e das fatalidades de uma América que (o) viu crescer — e ruir.

Todo grande romance contém dentro de si algum tipo de ciclo. Todo grande autor constrói e destrói algo monumental dentro dos confins de um leitor e de um livro. Não necessariamente nessa ordem, não necessariamente nesse sentido. Para contar um grande episódio, uma vida, época ou período, é preciso forjar universos, erigir personagens, suscitar coerências, fomentar realidades. É preciso, além disso, entreter o público-ledor, virando-lhe as idéias (e, às vezes, as candeias) pelo avesso; para, no fim, talhar-lhe alguma impressão proveitosa e indelével — que, passada a leitura, dispense a existência do próprio livro.

Philip Roth consegue tudo isso. Tanto que sua história vibra, crava-se, caminha, pulsa na consciência daqueles que se deixam conduzir por sua torrente de palavras esplendidamente bem escolhidas. Seymour "Sueco" Levov estende a mão, louro, misterioso, frágil e irresistível, e arrasta-nos consigo ao desfiladeiro e às catacumbas da humanidade mais prosaica e vívida — cujas profundezas promete horrores os mais vorazes e trevas as mais terríveis. Fica demonstrado que não há nada mais chocante do que a singeleza da própria vida.

"Pastoral Americana" é um tiro a queima-roupa; é um soco na boca do estômago; é a conclusão de que, no fim das contas, nada faz sentido.

Meu Ídolo

A opera principia pelo reencontro entre o Sueco Levov e Nathan "Saltador" Zuckerman., co-autor da narrativa. Reabre-se um portal para o passado comum, juvenil-ginasiano, em que o último mergulha para entender e explicar a ascensão e queda da família do primeiro, ao longo de três gerações de filhos.

É nessa parte que se dá a construção do protagonista e de seu clã igualmente admirável, igualmente tido como ícone. Roth mergulha nas reminiscências de todo e qualquer adulto escolarizado que, desde o primário (ou equivalente), conviveu e aclamou figuras de colegas que, geralmente pelos seus dotes poliesportivos, projetaram-se como modelos, como personalidades lendárias e, na lembrança, imbatíveis. A universalidade dessa relação "adorador-adorado" e a representação brilhante por parte Nathan e Philip, é a isca que prende e, posteriormente, acorrenta o leitor ao livro.

Minha Filha

O declínio chega sorrateiro e instala-se do miolo em diante, no livro. A casa cai quando Merry Levov, a primeira e única filha do Sr. e Sra. Sueco, trata de reduzir a escombros um mercadinho, uma agência de correio e um inocente que ali jazia. Interpretada como ato terrorista, conforme desejava sua artífice, a iniciativa transforma a jovem de dezesseis anos de ontem na mais nova fugitiva de hoje do FBI.

A transição entre a placidez e a calmaria do ex-fuzileiro naval (Seymour) e da ex-quase Miss América (Dawn) para a virulência de sua descendente direta (Merry) se faz ricamente, de forma paulatina e magistral. Assiste-se, de camarote, às intempéries da menina gaga que se convertem em revolta, que se converte em solidariedade a causas heróicas, utópicas e suicidas, que se converte em adesão ao terrorismo — que se converte em implosão progressiva do sistema americano de ser e existir.

Estão lá: a perda do controle e da autoridade dos pais com relação aos filhos; a individualização, a interiorização e o afastamento dos filhos com relação aos pais; e o rompimento, inevitável, entre as partes, de maneira violenta e infalível.

Meu Fim

Como se não bastasse a perda da filha, o Sueco, na ultima parte do livro, se vê perdendo a esposa: primeiro para o golpe de Merry, que a tira do mundo dos vivos; depois para a cirurgia plástica, o embelezamento artificial e as investidas do vizinho que um dia posara de tradicional, nobre e moralista.

A isso somam-se as reprimendas do irmão cortante, duro e realista, a inflexibilidade e a alienação dos pais (do Sueco) perante os episódios mais dolorosos que lhes foram omitidos, as imposições e humilhações de uma chantagista barata que se passa por aliada da filha, a topada e o descobrimento de uma Merry Levov desdentada, esfarrapada, fétida, suja, fanática, por vezes estuprada, encaminhando-se para a morte por anorexia.

O romance termina em meio a uma conversa descontraída e despretensiosa, embora assaz representativa, sobre os rumos da sociedade atual, em que conservadores exigem a volta do decoro, da ordem e da família, enquanto que liberais defendem a flexibilidade dos valores, a dissolução dos vínculos e a anarquia no país. Bastante sugestivo, não?

Meu Alvitre

Busque-se, então, na densidade desse volume utilíssimo, uma chave para a compreensão deste nosso tempo, e deste nosso século que finda. O diagnóstico está aí, pelas mãos do meritíssimo Philip Roth, nosso redentor e mirante mui digno.

Ainda que tenha proclamado o fim do romance, é mister desmenti-lo — com uma acolhida gloriosa a esses seus escritos.

J. D. Borges