A Poli como Ela é... (conheça também a versão em e-book)

Eis que a Formatura, finalmente, se aproxima. E eis que surgem aqueles questionários do tipo: "Estamos avaliando a nossa faculdade como um todo, e gostaríamos que VOCÊ expressasse a sua opinião. Saiba que os seus comentários serão, para nós, muito valiosos e que — só através deles — poderemos, no futuro, promover mudanças; objetivando sempre o melhor para a nossa Escola. Trabalhamos para que a mesma permaneça em lugar de destaque no rol das grandes escolas de Engenharia do País. E atenção: você não precisa se identificar."

Foi quando me descobri no quinto ano, quase livre dos tentáculos da Poli. Senti-me inatacável e resolvi soltar o verbo, dando nome aos bois e não deixando pedra sobre pedra. O espaço foi insuficiente para tanta reclamação, crítica, sugestão. Empolgado, elaborei uma espécie de dossiê/manifesto (o qual você lerá a seguir) apontando o que considero de mais problemático e de mais insuportável na nossa Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

Vestibular

Quando se pensa nos nossos engenheiros politécnicos recém-formados, em sua vasta maioria limitados, sem o menor conhecimento de Administração, Finanças ou Marketing — culpa-se, de saída, a Poli. A meu ver, a origem de muitos dos problemas dos politécnicos com a área de Humanas, em geral, está no Vestibular. Esse, ao instituir que o candidato aos cursos de Engenharia só deve, na segunda fase, fazer exames de Matemática, Física e Química, é, antes de tudo, o grande limitador.

Quando a FUVEST anunciou que os candidatos ao curso de engenharia só teriam de fazer as provas referentes a essas três matérias, comemorou-se muito; ouviu-se "vivas" por toda a parte. Entretanto, aquilo que, a princípio, revelou-se uma benção, a longo prazo provocará, no meu entender, uma grande catástrofe.

Primeiro porque o camarada, que no Colegial tiver a intenção de estudar Engenharia, será automaticamente isolado de seus colegas de Humanas e de Biológicas. (Isso significa ser isolado da grande maioria das meninas, dos eventos culturais e sociais do colégio.) Segundo porque nosso amigo vai chegar à Poli ignorante em Português, Inglês, História e Geografia. E terceiro porque, como sabemos, dentro da Poli, ele só tende a desaprender o pouco que sabia sobre esses assuntos. Sairá dela sem saber ler, escrever ou conceber idéias próprias.

O Vestibular para Engenharia deveria voltar ao que era há cinco ou seis anos trás. Naquele tempo, favorecia-se aqueles candidatos que possuíam uma visão de mundo mais abrangente e mais diversificada, e não aqueles candidatos de olhar estreito, de interesses pouco variados e de horizonte restrito ao universo de Exatas. O Vestibular favorecia os generalistas e desfavorecia os especialistas. O que é, num contexto mais amplo, o que o Mercado de Trabalho de hoje exige: profissionais com formação multi-disciplinar; adaptáveis e flexíveis.

O resultado é que, em cinco anos de convívio com colegas bitolados, de imaginação estéril (que só vivem para seus aparelhos — televisão e computador), e com raríssimas meninas, o sujeito, que um dia foi normal, sai da Poli transtornado, bobo, analfabeto — sem ter lido um único livro, sem saber viver em sociedade, sem saber dar bom-dia a uma mulher, sem saber o que é ir a uma festa sem beber, sem ter amigos que não os da Poli, sem ter viajado, sem ter se aventurado, sem ter se arriscado, sem ter se rebelado, sem ter rido, sem ter chorado — enfim, sem ter vivido boa parte de sua juventude. E quem vai empregar um cara assim — sem quaisquer experiências e sem objetivos?

Período Integral

A Escola (em período integral) toma tempo demais do aluno. De modo que: ou ele se dedica inteiramente à Faculdade, estudando em excesso e reduzindo seu universo à trinca "sala de aula, biblioteca, mesa de estudo"; ou ele se revolta, preenche suas horas livres com dependências (ou não), para, no fim, formar-se Engenheiro, porém com horror à Engenharia — o que é, no mínimo, intrigante.

Sem mencionar o fato de que o aluno, nos últimos anos, mal tem chance de fazer um estágio de meio-período (20 horas semanais), dada a quantidade de tempo que a Escola exige para si em forma de trabalhos e provas. (Aliás, muitos dos professores declaram-se francamente contra estágio "fora da Poli".)

Disciplinas

As disciplinas precisam ser, urgentemente, repensadas. Os professores deveriam, no mínimo, conversar entre si; dado que, ao contrário do que se pensa, não existe quase nenhum encadeamento lógico entre as mesmas. "Física I" não tem a menor relação com "Física II"; nem a última com "Física III"; e nem nenhuma das anteriores com "Física IV". E, na Elétrica, "Introdução à Eletrônica" não introduz absolutamente nada sobre o que será visto em "Eletrônica I"; e em "Eletrônica II", o conhecimento anteriormente adquirido não facilita nem um pouco a compreensão da matéria. Tanto é fato, que o professor de "Eletrônica II" não conseguiria jamais tirar uma dúvida de "Introdução à Eletrônica", que é "ensinada" por outro professor — e vice-versa.

Além das lacunas entre as disciplinas, poder-se-ia também falar sobre os tópicos que se repetem; nos programas que se sobrepõe. "Mecânica dos Fluídos" repete coisas de "Resistência dos Materiais" que repete coisas de "Mecânica IV" que repete coisas de "Mecânica III". "Engenharia de Software II" repete quase que completamente "Engenharia de Software I". E a coleção de "Resistências dos Materiais" da Civil? Haverá também nelas tópicos que ecoam indefinidamente? Claro que sim.

Laboratórios

Os Laboratórios deveriam ser — pelo amor de Deus — optativos! Todos os alunos detestam aquelas salas e enfrentam as experiências como quem vai pra guerra: com uma preguiça monumental e com um desgosto retumbante. Lá o tempo passa devagar e os ítens na apostila (referentes ao experimento que se está realizando) não acabam nunca.

Isso sem falar nos odiosos relatórios, que são, ano a ano, descaradamente copiados. Segundo a lenda, a primeira turma da Poli os teria feito; a segunda turma teria copiado da primeira, a terceira da segunda, a quarta da terceira — sucessiva e ininterruptamente. Tudo pela preservação dessa tradição centenária.

De tal forma que, a maioria dos professores segue critérios estapafúrdios no que concerne à correção de relatórios e de provas, visto que, com exceção da primeira turma da Poli, ninguém sabe absolutamente nada. Os mestres não têm solução para os aparelhos que falham, fazendo vista grossa para as salvadoras colas durante os exames, dispensando os alunos mais cedo das chatíssimas experiências e arredondando as notas no final do semestre.

E assim segue a carruagem. Dos laboratórios, guarda-se apenas uma lembrança amarga de uma labuta, por tantas vezes, infrutífera. Lá, ninguém aprende nada e, se aprende, num minuto esquece tudo. O conhecimento prático "adquirido" nas bancadas, ao contrário do que pensam aqueles que organizam o currículo ideal, nunca ajuda a compreender o conhecimento teórico ministrado em salas de aula (vide Eletrônicas e Físicas.)

Professores

Os professores nunca estão em suas salas: seja para tirar dúvidas; seja para revisar uma prova. Na Poli, passeia-se muito. Na Matemática e na Física também. Muitas viagens, muitos congressos e muitos cafezinhos — afinal ninguém é de ferro.

Alguns dos professores, ironizando a baixa produtividade de seus colegas, colam, na parede de seus gabinetes, um adesivo um tanto quanto ilustrativo: — "Aqui se trabalha." Como se dissessem: — "Ninguém na Escola trabalha; mas nós aqui abrimos uma exceçãozinha..."

Os professores, definitivamente, não preparam as aulas. Consideram suas lousas claras e organizadas, como se fossem auto-explicativas. Quando não apelam para o retro-projetor (popular "máquina do sono"). Consideram suas anotações de aula suficientes e inteligíveis.

E cai na prova o que foi dado em classe; e o que foi dado nas outras classes também, uma vez que o programa é extenso e que cada professor aborda o assunto que bem entende. O aluno que se vire para assistir a tudo simultaneamente. (Vide "Controle I").

A prova estava difícil? a média foi baixa? Então, "os alunos continuam estudando errado!"

As notas não saíram? Não tem importância, abre-se a substitutiva! (Vide professores de Eletrônica.) Pensando melhor, eu sou o professor e "solto as notas quando eu quiser!"

Todos já visitamos as salas dos professores algum dia, não é mesmo? (Embora eles próprios nunca estejam lá.) Já reparou como amontoam papéis, livros, estantes, mesas, cadeiras, lustres, cinzeiros, computadores, impressoras, armários, poeira, sujeira, mofo — enfim, percebeu como desperdiçam e como destroem tudo? Quando terminam de bagunçar a própria sala, os anexos e laboratórios de um bloco inteiro, constróem blocos novos (vide bloco D) — pois, afinal, não cabe mais nada. (Faça estágio na Poli para ter comprovações diárias disso.)

E o lixo continua aumentando, astronomicamente: invadiu os corredores (perto do Xerox do Luís) e amontoa-se embaixo das escadas (da Poli inteira).

Será que é tão difícil arrumar? Agora, com certeza, o é. Mas o entulho foi construído aos poucos. E você, que contribuiu com a sua parcela de lixo, por quê não arrumou naquela época?? E aquelas pessoas, que passam o dia sentadas em frente aos murais da entrada do bloco principal da Elétrica, será que não poderiam ajudar?

Não se exige nada dos nossos digníssimos professores; não são cobrados por ninguém, não têm de prestar contas. Afinal, Poli não é uma empresa: não se trabalha por um objetivo comum; cada um vive apenas para o seu mundinho. (E, às vezes, nem isso.)

Porque os Alunos não Reclamam

Por quê os politécnicos não reclamam? Ora, muito simples: como um aluno com um, dois, ou até cinco ou seis anos de Poli vai mudar uma estrutura que se mantém imutável há cem anos??

Mesmo os professores (alguns deles) afirmam que o destino da nossa Escola fica a cargo de uma meia dúzia de "caciques" — antiquíssimos, que não arredam o pé de suas convicções, e que, quando provocados, comentam: — "Se deixarmos nas mãos dos alunos, eles acabam com o nome da Politécnica." — como bradava um professor de "Cálculo Numérico". As pesquisas de opinião sempre circulam, e eu acho que até se lê nossos comentários, mas as coisas nunca mudam.

Afora essas questões, os alunos têm medo de abrir a boca, temendo possíveis represálias dos professores — que podem se vingar de várias maneiras: dificultando as provas; punindo as tentativas de cola com "grau" zero; reprovando por falta; exigindo trabalhos extras; "esquecendo-se" de passar a nota de determinado aluno para a Secretaria; passando a nota errada para a Secretaria; perdendo provas e relatórios (para depois pedir que o aluno venha refazê-los nas férias!)

Eu mesmo esperei a chegada do Quinto Ano para botar a boca no mundo. Ainda assim, corro o risco de tomar uma reprimenda, e talvez até morrer na praia.

E os alunos também têm defeitos (intrínsecos). A maioria não lê, não escreve, tem horror a Português, a Literatura e, portanto, não sabe se articular. Como, nesse caso, formalizar uma lista de reclamações, se a Escola aboliu o que havia de Humanas no currículo e se a única coisa que se aprende, em termos de leitura e escrita na Poli, refere-se a livros, apostilas e relatórios que não primam pela boa redação? Lê-se mais em inglês do que em português. E sem armas (isto é palavras), não há como lutar (protestar). Mesmo porque, desde um mísero histórico limpo até uma mudança de nota — na Poli, tudo deve ser requerido por escrito.

Reforma Curricular

Venha aí a salvadora Reforma Curricular, prometendo mundos e fundos. Segundo comentou uma de nossas professoras, "vai, por exemplo, acabar esse negócio de ter de acordar cedo: as aulas começarão a partir das oito horas; vai também acabar com esse negócio de não ter horário de almoço: as aulas irão até o meio-dia, para recomeçarem às duas da tarde, e seguirem até às dezoito horas." Além disso, dizem que o número de créditos por semestre nunca ultrapassará o número de vinte e seis (vinte e seis horas por semana).

Tudo isso é muito bonito e nós agradecemos a consideração. Os organizadores da Reforma Curricular se esqueceram, porém, de que, como tudo o que é planejado em termos de horários e de matérias, só funciona para alunos com currículo ideal. Um aluno médio, que "pegou" algumas dependências, passará por uma sobrecarga de créditos nos semestres finais — e, inevitavelmente, terá problemas com o "novo" esquema de horários.

Será que não atinaram para o fato de que, nos últimos anos, quase todo mundo passa por alguns semestres beirando os quarenta créditos? Pois então: como das oito ao meio-dia, tem-se quatro horas/créditos; e como das duas da tarde às dezoito, só se tem mais quatro horas/créditos — o máximo de créditos por dia será em número de oito. Assim, o aluno que tiver de cursar quarenta créditos, deverá assistir a todas as aulas de segunda a sexta, das oito às dezoito!

No semestre passado, eu cursei quarenta créditos e cumpri vinte horas de estágio semanais — depois da maravilhosa Reforma Curricular, isso será impossível!

Falta Tudo

E eu não poderia deixar de falar nas nossas salas equipadíssimas: sem ventilador, sem retro-projetor (conquanto seja odiado pelos alunos, os professores não vivem sem ele), sem tomadas que funcionem, sem giz, sem lousa limpa, sem lixo, sem porta, sem luz, sem ventilação.

Quanto ao suporte em termos de Informática, quase que não vale a pena comentar. Basta dizer que somente os alunos de Computação (ou seja, do Quarto Ano em diante) têm direito a usar PCs ou Workstations. Enquanto que na sala dos professores, nunca falta um ou mais Pentiuns, com monitores de diversos tamanhos, impressoras laser e/ou coloridas; papel, tinta e disquetes à vontade; conexão à Internet com horas livres e um link bem veloz.

Nunca se pensa no conforto do aluno, nas suas condições de trabalho e nas ferramentas das quais ele dispõe. Parafraseando o sábio Parreira: na Poli, o aluno é só um detalhe.

E nós, alunos, não pedimos nada de absurdo. Não estamos falando em ar condicionado e nem em salas acarpetadas, equipadas com televisão e videocassete (vide FGV).Todavia, achamos que papel higiênico nos banheiros é o mínimo! Sabonete, espelho, quem sabe.

O descaso, na questão dos banheiros, não atinge somente alunos; mas a todos que trabalham na instituição, inclusive professores! Não garantir condições para a higiene das pessoas é uma tremenda falta de respeito.

Não é de se espantar que os alunos oriundos de uma escola particular, de um colégio bem cuidado, limpo e arrumado abandonem o curso de engenharia da Poli ainda nos primeiros anos. O mato crescendo por toda a parte, o barro e a lama se espalhando pelo chão, os vidros quebrados, as pinturas descascadas, a imundice das paredes, a ferrugem nas carteiras, a podridão das mesas, o desfacelamento dos pisos, as quinas lascadas, o esgoto a céu aberto, as goteiras — o ambiente na Poli é de causar aversão; e o primeiro choque a gente nunca esquece. Depois, não há palestra do Covas que levante a moral.

"Na Poli, a pessoa aprende a se virar"

Segundo os otimistas, a desorganização da Poli em termos de matrícula, de notas, de salas, de disciplinas, de professores e de horários — tem papel importante na formação do engenheiro, pois ensinam-no a "se virar" (na vida). Há ainda outros que afirmam que, na Poli, "você aprende a aprender."

Ambos têm razão, mas ambos devem concordar comigo que uma escola de engenharia em que alunos não aprendem, em que os professores não ensinam, de onde engenheiros saem sem saber nada ou quase nada de sua profissão — tem algo de muito errado.

Então, para que chamá-la de "escola"? para que salas de aula, professores e alunos? Se é para aprender a se virar, vamos todos trabalhar no porto como estivadores; ou então, descasquemos batatas no Exército; o que acham de vender bugigangas, como camelôs, no Centro?

Se é esse o propósito, existem lugares em que a ensinança é bem melhor do que a da Poli...

J. D. Borges

P.S. Conheça toda a história deste texto e suas repercussões ao longo dos anos baixando o e-book A Poli como Ela é... — O Livro.