O Tecno e a trilha sonora do Homem de Lata

O que é toda a história da Robótica senão o sonho de humanizar esse universo de mecanismos e de máquinas engendrados pelo Homo Sapiens? Desde teóricos utópicos, como Isaac Asimov (que redigiu a Carta Magna dos andróides) até estudiosos da hoje promissora Inteligência Artificial (que visa nos emular através de redes neurais), estão todos na corrida pelo segundo milagre da Criação.

Prometem, num futuro próximo, nos aliviar dos aborrecimentos e dos desgastes mais elementares do quotidiano --- premiando-nos com a última palavra em Einsteins de lata.

Na contramão dessa história, ou por outra: em paralelo a essa revolução que desabrocha, vem engatinhando, inocente e silenciosa, uma outra revolução de mesmo porte. Revolução que promete, em nível organizacional, transformar, não as máquinas em homens, mas sim os homens em máquinas.

Automatizando desde os seus rituais de alimentação sintética e cada vez mais acelerada, até suas incontinências biológicas aparentemente involuntárias (mas facilmente programáveis); desde seus anseios afetivos cíclicos (substituíveis e contornáveis) --- até suas ambições estéticas e de projeção individual (iludíveis e manipuláveis); desde seus desejos de procriar (estimuláveis ou reprimíveis, conforme necessidade) --- até sua aculturação por meio das mais variadas manifestações da sub-Arte (ou pseudo-sofisticação Pop).

Resumindo: em nome da mais totalitária qualidade, produtividade, competitividade, credibilidade, adaptabilidade ou outro slogan que se quiser inventar, poder-se-á, num futuro, manobrar rebanhos inteiros de cegueira e subserviência. Rebanhos a serviço do que se convencionar aconselhável, benéfico, imprescindível, divino, vital para a Humanidade.

Dentro desse pacote de ideologias tecnológicas, poderíamos tranqüilamente encaixar toda essa vanguarda musical de agora --- que reduz harmonias inteiras a beats e breaks seqüenciais; limitando a participação humana a repetitivas linhas de baixo e a sussurros vocálicos ocasionais. É o que se chama, não por acaso, de drum’n’bass, tecno ou, num passado remoto, industrial.

Afinal, como Sócrates, que condicionaria seus soldados da República a hinos e cânticos militares, tenciona-se neste momento orquestrar nossa juventude estéril. (Exatamente como as vacas que dão mais leite ao som de música cadenciada.) E o tecno se presta para tal, visto que se compõe basicamente de loops circulares --- em que o refrão toma conta, abolindo a estrutura secular do cancioneiro e preparando para uma lavagem cerebral.

Merece, portanto, uma análise.

À primeira vista, o novo ritmo lembra a trilha sonora ornamental de naves espaciais, de ETs insossos ou de linhas de montagem de fábricas. Produzida praticamente em laboratório (leia-se estúdio), essa música nasce da sobreposição de seqüenciadores, sintetizadores, teclados, produtores, DJs, engenheiros de som, samplers e os mais artificiais efeitos sonoros que se puder imaginar.

Sua vertente mais dançante e ruidosa vem encabeçada pelo "Prodigy" --- cujo líder, Liam Howlett, pode ser considerado o arquétipo de criador desta geração pós-pós-moderna atual. Exclusivista e onipotente, catalisa as influências mais descabidas, desde que o mundo começou para ele, com Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band. Inspirando-se na linguagem agressiva, quase cuspida, do rap e do hip-hop, e no rock anarquista, desbocado, dos Sex Pistols, o "Prodigy" consegue inovar no mesmo gênero que Kurt Cobain preferiu abandonar, há cinco anos atrás.

Já os "Chemical Brothers" (outro conjunto sob os holofotes) parecem mais interessados no lado percussivo da realidade. Seus sons de ambulância, de elevador e de motorzinho de dentista, embora palatáveis nos comerciais de cinema e de esportes ditos radicais, tendem a se esgotar pela exaustão com que estão sendo executados. Sua força estaria no movimento que impingem aos notívagos desavisados; daí o seu sucesso pautado em raves e outros eventos cuja tônica é o entretenimento descompromissado e inadvertido. Valem pelas experiências interdisciplinares com outras cabeças da mesma époque como, por exemplo, Noel Gallagher, do Oasis, que em Setting Sun faz uma interpretação livre e apocalíptica de Tomorrow Never Knows (dos Beatles, claro).

Quem observa uma performance desses sujeitos, ou meramente os ambientes em que suas composições são tocadas, tem a impressão de que o público: ou vai pôr o local abaixo; ou vai embarcar num ecstasy hipnótico, rumo a experiências extra-corpóreas, astrofísicas, multidimensionais (se é que isso pode ser combinado). Logo, a preocupação dos entusiastas da tendência tecna se concentra na coreografia letárgica, espasmódica, desajeitada, e não em qualquer conteúdo poético ou melódico.

Como uma palavra de ordem que late --- enquanto conforma.

A natureza não interessa mais, foi-se o tempo da inspiração bucólica, da perfeição campestre e das pastorais. O ponto de partida agora é a cidade, a megalópole: veloz como um raio; poluída como o pecado; barulhenta como a explosão de uma supernova; apinhada como um cupinzeiro; tediosa como uma lagoa morta; condenada como o anjo caído e feia como a morte.

Mas ainda assim, fatal como o homem de lata.

Eis o nosso destino: ou a integração plena com a cidade; ou a desintegração total, no hiperespaço.

J. D. Borges