Eu morri, há meros dez anos atrás

Raul Santos Seixas foi uma alma simplória, que pretendeu explicar as verdades mais cruciais da existência. Embora não dispusesse da bagagem necessária para tanto, conseguiu, por meio da intuição de poeta e da mítica de rock star, impressionar e marcar legiões de admiradores e de fanáticos que lhe atribuíram uma aura quase sobrenatural, de sábio e de profeta. Ainda que não tenha chegado a nada de original, em termos filosóficos, históricos ou psíquicos, teve o mérito de levar essas questões a um público que jamais mereceu de seus ídolos tamanha profundidade. E acabou endeusado.

Embora pertencente à geração dos Anos Sessenta, não acompanhou as vanguardas musicais que sucederam a Bossa-Nova. Achava “chato”. Concentrou-se em Luiz Gonzaga e Elvis Presley. Destoou, portanto, do que chamou de “a linha evolutiva da música popular brasileira”, tendo ficado em segundo plano — sempre como uma figura menor, menos antenada, menos interessante. Virou herói dos excluídos, porque excluído foi, a vida inteira. Virou símbolo da contravenção e do deboche, visto que desafiou impetuosamente a Censura (pelo simples fato de que Ela não o levava a sério): —“Para que dêem crédito ao meu ponto de vista (já que é mais avançado que o deles) eu preciso, como Caetano, ser expulso do país e ter músicas censuradas, ser preso como Chico... O convencionalismo desses debilóides me deixa puto.”

Não foi obviamente encarcerado, torturado, exilado. Fez do alcoolismo sua cruz. Sofreu de dramas tão triviais e tão humanos que não chamou a atenção dos meios de comunicação de massa, preocupados com os rumos políticos e com as posições ideológicas do momento. Não se definiu como de direita ou de esquerda. Dizia-se anarquista e não acreditava nas estruturas sociais, pois não conseguia lidar com elas. Foi marido para cinco mulheres, e pai para três meninas de três casamentos diferentes.

Viveu, em suma, das paixões mais efêmeras e dos vícios mais reincidentes. Por isso, deixou músicas simples e raciocínios inacabados, breves, inocentes. Por isso, tantos os seus escritos espalhados e tão, entre si, desconexos. Por isso, tantas as históricas desencontradas e inconclusivas a seu respeito. Por isso tudo, ainda é Raul Seixas: porque construiu para si um totem que poucos conseguem decifrar, explicar, desfazer; porque suprimiu todos os caminhos até o seu verdadeiro eu, deixando perguntas (nunca respostas) que fizeram da sua personalidade algo mais complexo do que realmente era: —“Eu não sou nada, minha gente, não estou em nada e por nada ao mesmo tempo sou. Tudo, em tudo e por tudo. Incoerente e arbitrário às vezes, muitas vezes, milhões de vezes, todo o tempo... Eu não sei quem sou nem quero que me definam.”

Mas foi honesto, enquanto durou. Jamais passaria por picareta (como Dom Paulo Coelho, escritor). Era por demais sincero e por demais inconseqüente, não perderia tempo maquinando esquemas e posturas que poderiam lhe render poder, glória e dinheiro. Não tinha cara-de-pau, nem competência para vender ilusões como quem vende cachorro-quente. Fez, no entanto, seu trabalho de auto-ajuda, dando conselhos ao vulgo, pois via nele (e somente nele) a saída para a lama e para as nossas misérias mais perenes: — “Vai, vai, vai e grita ao mundo que você está certo / Você aprendeu tudo enquanto estava mudo / Agora é necessário demonstrar o teorema da vida e os macetes do xadrez / Você tem as respostas das perguntas / Resolveu as equações que não sabia / E já não tem mais nada o que fazer a não ser / Verdades e verdades mais verdades e verdades para me dizer / A declarar.”

A fantasia que confeccionou para si próprio, de repente, um dia, não lhe servia mais. Estava, não obstante, preso a ela; impregnara-se em sua pele, amordaçara-lhe as idéias e o corpo — como uma camisa-de-força que só libera sua vítima depois de morta.  Assim, desse jeito, chegou a morte a Raul Seixas: precoce, porém redentora; cruel, porém santificante; inesperada, porém justa. Cantou-a e exultou-a, pois acreditava estar nela as razões, as causas e os porquês que não descobriu em sua intensa e irrequieta biografia. Seria, para ele, como uma revelação última, total e fatal: —“Eu te detesto e amo / Morte, morte, morte que talvez / Seja o segredo desta vida.”

Foi encontrado morto por uma antiga empregada. A única presente, a única sobrevivente aos instantes derradeiros e finais.

Deixou, porém, uma multidão de órfãos, que se acotovelaram em torno de seu caixão e que hoje clamam para si o seu legado, seguindo o que julgam ser sua doutrina, adotando o que imaginam ser um modelo para a posteridade, ainda que ele tenha alertado: — “Eu não dou o menor valor ao artista que personifica o ‘Raul Seixas’. Eu inventei ele. Raul Seixas não tem nada a ver comigo.”

Talvez resida aí a maior lição sobre o mito: simplicidade, banalidade e trivialidade. Mostrando que a nossa existência não se constitui de soluções e, sim, de problemas. Mostrando que a nossa vida não busca fins mirabolantes, nem objetivos divinais — apenas um equilíbrio mínimo e algumas realizações de que possamos nos orgulhar.

J. D. Borges