Da Matrix que nos une

O argumento do sonho, de Descartes.

"Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas... Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito?... Lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono..."

Na hipótese de que a vida seja um sonho e de que sejamos todos comandados por um Destino inescapável, muita coisa perde a sua importância, muitas pessoas perdem o seu status.

Você já imaginou que pode estar vivendo um grande teatro e que todos os estímulos ao seu redor existem apenas para que você realize a parte que lhe cabe nesta encenação? Você já sentiu que pode estar empreendendo batalhas perdidas, iniciativas vãs apenas porque esse é o seu papel neste drama, e porque assim você ajuda alguém a atingir objetivos muito maiores? Você já se soube um mero coadjuvante ou já tomou ares de predestinado? Ou você se crê um pária, um cético e pensa que assim pode fugir desta grande roda que a todos devora?

Não lhe ocorre que podemos estar confinados em vidinhas limitantes a fim de que não seja desestabilizado este status quo? Quem lhe garante o livre-arbítrio, se tudo o que você pode fazer ou pensar já nasce circunscrito ao campo de possibilidades que a ti está reservado? Por quê você vive em função de desejos condizentes com a sua classe, com a sua faixa, com o seu grupo, com a sua pequenez e fragilidade — não almejando trajetórias mais elevadas que transcendam aquilo que esperam de você, aquela mixaria que a ti está associada?

Por quê?

Porque você foi concebido, criado e formado dentro destas engrenagens. Porque te ensinaram que cada um tem a sua posição e que se você quiser ser bombeiro, astronauta e artista de televisão ao mesmo tempo não dá, não pode, não tem condição. Porque você se conforma, porque você paga um analista que te reduz a uma dezena de traumas e de impulsos, porque o seu círculo de amigos, de conhecidos, de parentes te puxa para a mediocridade toda a vez em que você ameaça se lançar e botar as azinhas pra fora. Porque você tem medo de estar sozinho. Porque você não quer agarrar, devorar e se esfolar no mundo só porque tem alguns sonhos diferentes, menos comuns, menos ordinários do que a maioria da humanidade.

Porque você não quer acordar.

Não obstante, contudo, quando voltar ao antes, ao depois, ao limbo, ao nada, perceberá o quanto foi covarde, o quanto temeu fantasmas que jamais te ameaçaram, o quanto se acomodou dentro de posições vulgares — apenas para que não aparecesse destoando de seus pares, posando de ridículo para quem poderia te menosprezar. E saberá o quanto desperdiçou, saberá quantas portas estavam ali abertas ou entreabertas, promissoras ou grandiosas — a tua espera. E você não entrou, não aceitou, não mudou, não quis. Jogou tudo fora. E se jogou no lixo junto com tudo isso.

E agora? O que te resta?

Agora você volta, você retorna, você está aqui de novo, mais uma vez. Prometeu a si mesmo que doravante fará o percurso de outra forma, fugindo da manada e ascendendo aos píncaros da glória. (Glória que é sua, que é nossa, que é de qualquer um que se proponha a tal.) Arma-se e cerca-se de todos os exércitos e de todos os artefatos, enfrenta logo de cara o teu inimigo, lança-se numa disputa irada pelo que lhe pertence, pelo que é seu por direito, por dever, por justiça — ou por qualquer coisa que valha a pena, ora bolas.

Então seu desempenho, de repente, se revela uma impossibilidade que ninguém jamais previu, uma novidade com a qual nunca contaram, um momento de triunfo como nunca jamais houve igual. E você atropela as adversidades, subjuga os detratores e os obstáculos, ultrapassa a miudeza e reina soberano e eterno — no reino de salvação e de bem-aventurança que, este sim, lhe foi destinado.

Então você acorda todo amassado, todo despenteado, todo babado na sua cama de sempre, e as luzes se acendem e você percebe que a realidade continua lá: dura, forte, pesada, imutável. Imutável ponto: quem a faz somos nós e de nós ela deve ser escrava — não o contrário. Entendeu?

Então vá assistir Matrix.

J. D. Borges