Sublime Guinga — salvando, mais uma vez, a alma brasileira

Indescritível o prazer de experimentar a obra de um grande mestre. Mais indescritível ainda, talvez, o prazer de penetrar numa obra-prima que, nesta exata hora, floresce. Pois, para o bem e para o mal, nada se compara ao testemunho (por vezes fatal) de quem presencia o nascer de uma grande arte — saboreando seu aroma, sua cor, seu sabor e seu calor ainda frescos.

Temos nós, neste preciso momento, o mesmo raro privilégio. Ele nos chega pelas mãos de Guinga — compositor hoje sem rivais, que, em sua "Suíte Leopoldina", nos proporciona a singular oportunidade de desfrutar, de camarote, nada mais, nada menos que uma obra de gênio.

Em CD lançado pela heróica gravadora Velas, reúne o que se pode indubitavelmente considerar a fina flor da melodia, da harmonia, do ritmo, do arranjo, da poesia, da vocalização, do instrumental e da técnica. Embora já figure no panteão dos maiores criadores da Música Popular Brasileira de todos os tempos, Guinga não se restringe à mera invenção — revelando-se também um agremiador de talentos, como poucos houveram.

Em torno de seu magistral violão, desfilam colaboradores (uns afamados, outros nem tanto), no auge de sua perfeição artística. Assim, — mesmo poços, há muito, secos; ou aquarelas, há muito, desbotadas — soam como querubins afinadíssimos; iguais àqueles que, em épocas passadas, costumavam cantar e alegrar nossos caminhos, com inspiração precoce, estridente e divinal.

Como não se emocionar, por exemplo, com um Ivan Lins fulgurante, vigoroso, panorâmico, em justaposição às épicas cordas de aço de Rodrigo Lessa e ao vozeirão sereno e seguro do próprio Guinga, sob o manto de uma orquestração celestial, e sob a égide de uma letra simplesmente inesquecível? ("Abre a viola/ Não repara onde espia/ Se ela encara, apavora/ Se ela chora, alumia/ Como o demo rezando a Ave Maria/... Tange a viola/ Com espora e euforia/ Encarcera a senhora/ Que ela implora alforria/ Vara a noite chamando a luz do dia/...")

E como não se encantar com o desempenho de Chico Buarque num número que, se não tem a sua assinatura, tem o seu beneplácito e a sua herança em cada verso e em cada nota? Como? se a tragicomédia de "Parsifal", de Nei Lopes e de Guinga, cabe-lhe como uma luva — repleta de referências e homenagens, seja no pandeiro, na cuíca, no tamborim, na flauta ou nas preciosas rimas? ("Homem de grande sapiência e alto valor moral/ Clerical, radical, racional, marcial/... Pois acontece que a Filó não era mole não/ Avião, combustão, explosão, um vulcão/ Jóias, viagens, mordomias, compras no cartão/ Um milhão, um bilhão/ e a paixão não diz não/...")

E, claro, como não louvar a volta de Alceu Valença às suas raízes mais forrozeiras, mais nordestinas, mais luiz-gonzaguianas? Inda por cima num tributo tão espirituoso e tão apurado a esse gigante do som, que é Hermeto Pascoal? ("Assoprou numa chaleira, bateu numa bacia/ Jesus, Ave Maria, era uma sinfonia/ Secador e geladeira entraram no compasso/ Dançou a farinheira, saleiro no pedaço/... E tudo era coisa musical/...")

Guinga, embora virtuose consagrado das seis cordas, não hesita em dividir sua produção vívida e generosa com outras estrelas de primeira grandeza. Intercala, outrossim, faixas instrumentais (algumas solo) com performances em conjunto — associando, excepcionalmente, o motivo escolhido ao convidado ideal. E mesmo quando une personas individualmente díspares, preserva a homogeneidade e a coesão do álbum como que por milagre.

Desse seu formidável caldeirão retira, por exemplo, uma sofisticada peça de cool jazz, chamada "Par Constante", em que o soulman e brasilianista erudito, Ed Motta, cantarola um tema central (numa verdadeira ginástica de agudos e graves), combinado à guitarra magnífica (e sem paralelo na discografia nacional contemporânea) de Lula Galvão. Encaixa-a, então, o Guinga, entre uma marcada e bem construída valsa ("Perfume de Radamés") e um baião rechonchudo e bem sanfoninado ("Cortando um Dobrado", com Gilson Peranzzetta). Como o consegue, ninguém sabe.

As incursões mais reflexivas e mais metafísicas ficam por conta da gaita passional de Toots Thielemans, que abre e fecha o disco, respectivamente com "Dos Anjos" e "Constance" — evocando meditações solitárias rumo ao infinito.

A animação e a molecagem se anunciam através das piruetas do providencial clarinete de Paulo Sérgio Santos e da percussão mais que acertada de Armando Marçal, em "Di Menor" (uma parceria de Guinga com o desaparecido Celso Viáfora); também na carnavalesca "Mingus Samba", comandada por Lenine (outra escolha certeira), misturado a bem-vindos sopros.

Já o classicismo, no seu encontro com o Belo, pode ser apreciado nas aulas de timbre, de tempo e de dedilhado que são "Sargento Escobar", "Noturno de Leopoldina" e "Dissimulado", bem como na elevação lírica de "Choro Perdido" (mais um achado da família Blanc).

Eis algumas das passagens de uma obra absolutamente irretocável. Cheia de brilho, portadora de um novo alento, merece nossa atenção máxima e o nosso mais reverencial reconhecimento.

Afinal, Guinga pertence à linhagem, quase extinta, de homens que, num deserto de idéias e num mar de diletantismo, salvou a alma brasileira, quase perdida.

J. D. Borges