Aspirante a Candidato

Nada como discutir e conjecturar uma hipotética e inócua candidatura à presidência da república, a meio mandato de distância da próxima eleição, apenas pelo saudável esporte de desmoralizar e destituir um governo que — descobrimos depois de reelegê-lo (!) — não mais nos agrada, não mais nos consola. Declarado o nosso arrependimento, é hora de bradar: “Fora enganador, fora.”

E dá-lhe capas àquele que se apresentar um pouco mais articulado, um pouco menos barbudo, um pouco mais sorridente e bem talhado nos seus trajos. Que guarde também, o aspirante a candidato, motivações populares, evocando um certo ar de legitimidade, apelando talvez para o direito divino e para a predestinação, calando fundo no nosso misticismo e na nossa religiosidade. Não esquecendo de se embasar nalgum teórico da moda, de Oxford, Harvard, Cambridge, dalgum desses lugares — um professor, um brasilianista, que fale gíria, com tique nervoso e sotaque.

Ainda no quesito apoio e bases de sustentação, que tal se vier de um partido novo em esperanças, projetos e possibilidades? Uma sigla inédita, que não possa ser associada a nenhum histórico partidário de arcaísmos, malogros ou abusos de autoridade. E que tenha um líder: um farol, um capitão, um homem de muitas lutas e de um extenso passado, um batalhador, um dom-quixote, um maratonista incansável — um ideólogo, um sonhador, um sujeito de palavras mais do que de atos. Um comunista, ou ex-comunista, seria o ideal. Uma estrela de simpatia, retidão, calva acentuada, e respeitabilidade.

Vida pessoal. Outro item muito considerado pelo eleitorado. O aspirante a candidato tem de ser um homem casado, respaldado por sólida e inabalável união matrimonial. Se descasado, espera-se que mantenha boas relações com a ex-esposa e que não se meta em aventuras de alcova. Agora, se quiser liquidar de vez a questão, que nos apresente uma bela primeira-dama, um encanto, uma mulher de parar o trânsito, uma dessas beldades que atravessam décadas de playboys e de revelações globais. Aí ganha voto até de opositores obstinados, daqueles que assinam colunas venenosas nos principais diários.

Como, entretanto, conciliar o velho, desgastado, insepulto debate entre esquerdas e direitas, liberais e conservadores, republicanos e democratas, neófitos e briófitos? Para não perder o rebolado, seria interessante, para o aspirante a candidato, deslizar descomprometidamente de uma tendência a outra: mandando banana para o FMI, mas não para o capital estrangeiro (especulativo, inclusive); condenando as privatizações já feitas, mas não revertendo nenhuma delas (futuras, inclusive); falando cobras e lagartos do PFL, mas sem, no entanto, ofender e magoar seu sensível capo di tutti capi.

Apresentação. Que seja humilde nas suas origens, a fim de se espelhar na realidade sofrida do povão brasileiro (e vice-versa), o aspirante a candidato. Que ecoe, em seu português, a pronúncia malhablada das nossas mais distantes paragens — levantando o tom e rebatendo adversários ou opositores com a fibra e o berro de quem carrega a “força do interior” na cabeleira rala, na face abrutalhada e nas mãos calejadas. Sem abandonar, contudo, a emotividade, a candura, os olhos mareados e a voz embargada — ao falar de si e daqueles que o sensibilizaram.

Carreira. Pré-requisitos básicos para um aspirante a palácio do planalto: que seja antes de tudo deputado, prefeito, governador e ministro bem colocado, antes dos quarenta anos, não necessariamente nesta ordem. Deixando em seu rastro sucessores notáveis, figurando entre os mais bem votados, colecionando estradas asfaltadas e cultivando um traço firme de incorruptibilidade (aérea, terrestre ou aquática).

Nome, assinatura e logomarca do aspirante a candidato. Tem de ter duas sílabas, dois sons, um aberto e um fechado, equilibrando consoantes e vogais. Atenção especial ao duplo “l” que já nos deu presidente e impeachment, bem como um “medo de ser feliz” que sempre morre na praia. Associe-se, então, o novo símbolo a algo que indique uma nova alternativa, nem tanto à terra, nem tanto ao mar, uma linha intermediária, um caminho mais ao meio — uma terceira opção, ou slogan do tipo.

No fim, os deméritos. Que passem despercebidos, de vez em quando, os tropeções e os encontrões de uma vida atribulada. Que escape também, pelo canto da boca, pelo gesto mal calculado, uma fraqueza ou um despreparo, de modo que não lhe falte coragem para admitir: “Amigos, eu não tenho todas as respostas.” Que atire então aos leões esfaimados, as vestes e a pompa da infalibilidade. Que as contradições e as incoerências venham incontidamente à tona, e que o homem se desmascare na sua grandeza e na sua pequeneza de todas as horas. Que se proponha, então, a governar os povos e raças desta nacionalidade, com o brio de quem se sabe ínfimo e limitado para dirigir e subjugar as forças que nos controlam. Mas aí não precisa seguir nem ser o supracitado aspirante a candidato. Algum destino trará o escolhido e tratará de guiá-lo, dando-lhe vez, razão e caso.

Algum dia será.

J. D. Borges