Submergindo na amarelidão dos Beatles

“And our friends are all aboard  
Many more of them live next door  
And the band begins to play...

As we live a life of ease  
Every one of us has all we need  
Sky of blue and sea of green...”

Simplicidade. É o que fascina e o que conquista nos Beatles. A simplicidade com que nascemos; a mesma que carregamos por um tempo, mas que perdemos; a simplicidade que não soubemos guardar e que mandamos embora ao crescer e ao amadurecer; ao endurecer nossa carcaça. A simplicidade de reduzir o mundo a umas tantas equações: all you need is love; with a little help from friends; make love all day long; think for yourself; the world is at your command.

Simplicidade que John Lennon depois negou ao decretar que o sonho havia acabado; a mesma que, em seguida, tomou-lhe novamente de assalto — quando traçava seu projeto particular de utopia, em Imagine. Simplicidade que fez de Lucy in the Sky with Diamonds uma descrição de um desenho infantil, uma viagem pelos estados estanques e estritamente sensoriais das drogas. Simplicidade que congelou os anos dentro de uma bolha singela, reconfortante e imutável: “I could be handy, mending a fuse / When your lights have gone. / You can knit a sweater by the fireside / Sunday morning go for a ride, / Doing the garden, digging the weeds, / Who could ask for more?

Simplicidade que resumiu os Anos Sessenta a bandeirolas como paz, amor, orientalismo e liberdade sexual. Que fez da Pop Art algo mais sério e mais duradouro do que se pretendia a princípio, e do que mereciam seus artíficies. Simplicidade que nos condenou a uma crescente simplificação das coisas do espírito, enquanto desenvolveu nossa técnica, nossos aparatos, nosso ferramental. A tal ponto, que dispomos hoje de brinquedos tão sofisticados que não entendemos pra quê eles servem. Nossa cabeça não consegue mais acompanhar tanta funcionalidade.

Onde foi que nós erramos?

Erramos ao pretender que o simples se faz pelo simples. Exatamente o contrário da maior lição que os Beatles deixaram —  a única que não conseguimos apreender de verdade: o simples só se pode alcançar pelo complicado; o prêmio só vem pelo esforço continuado; a bonança, pelo caos e pela tempestade. John, Paul, George e Ringo apenas chegaram a essas fórmulas de beleza e de naturalidade, que quase respiram, porque fizeram-se escravos da composição, da execução e do experimentalismo abnegados. Que o diga George Martin, o maestro cuja erudição, bagagem e colaboração não se podem estimar.

Assim, o que aparentemente se mostra simples pela cadência cardíaca, pela harmonização sutil, pelas melodias surpreendentemente lineares, revela-se, em verdade, resultado de uma complexidade impensável, de um trabalho exasperantemente árduo, de pressupostos e de conhecimentos acumulados dia e noite, em incontáveis sessões, anos a fio. Mas que não aparecem no produto final.

Assim, nossas vãs tentativas de imitá-los, de continuar no ponto em que eles pararam, redundaram em caricaturas, em piadas sonoras, em espasmos que não duraram. O mesmo valendo para a estética pop, que sacrificou a elaboração em nome de um certo despojamento, em nome de uma certa espontaneidade, que hoje nos permite valorizar um suspiro, uma pose, um silêncio — porque tudo é arte, porque qualquer coisa pode ser taxada de genial, porque perdemos a Tradição, a História e os parâmetros. Como os hippies que chafurdaram na lama de Woodstock, em 1969.

Portanto, e por tão pouco, não se consegue explicar como os Beatles chegaram a realizações tão especiais, sempre passíveis de retomada e de reinterpretação. Parece uma impossibilidade, para nós, que tenham legado tamanha qualidade e tamanha quantidade num intervalo relativamente breve, entre os primeiros registros, em 63, e os últimos, em 69.

Se tomarmos, no entanto, o imediatismo e a inconstância que caracterizam a nossa época, qualquer “catedral do espírito”, como diria Carpeaux, se transforma num absurdo irrealizável; pura consequência de um dom maravilhoso ou inexplicável. Logo, aos nossos olhos, rasos e práticos, os quatro cabeludos de Liverpool mostram-se improváveis, como seres outra raça, de outra galáxia, que, se quisessem, andariam sobre as águas.

(Portanto, e por tão pouco, desconfie sempre do que lhe parecer simples e celestial, numa primeira abordagem. Talento não brota, não dá em árvore. É esmero, é polimento, é persistência no mais elevado grau. E estão revogadas todas as disposições em contrário.)

Por isso, uma volta ao Yellow Submarine se faz enriquecedora e saudável — na medida em que retoma esses princípios de dedicação e de amor à Arte, num tempo em que ainda havia a preocupação de inovar, ou pelo menos, de acrescentar algo.

Por fim, que essa trilha remasterizada desperte em nós esses mesmos anseios e essas mesmas inclinações, para que possamos, um dia, retribuir-lhes à altura.

There’s nothing you can do that can’t be done.

  J. D. Borges