Quanto Vale um Soldado Ryan

A reconstituição de alguns dos horrores da História da Humanidade produz, em nós, efeitos tão perturbadores que, depois de uma sessão de embrulhar o estômago, de confundir a razão e de cingir o coração, indagamo-nos sobre a real utilidade dessas iniciativas "conscientizadoras", baseadas no choque anafilático.

Tome-se a última produção de Steven Spielberg, "O Resgate do Soldado Ryan".

Consciência Moral

Até que ponto a exibição de mortes por tiro, por afogamento, por queimadura, por mutilação, por hemorragia, por bombardeio, por explosão, por cegueira, por ignorância e por estupidez pode evitar futuras carnificinas de mesmo porte? Até que ponto a apreensão de detalhes de açougue dum massacre como o de Omaha Beach pode beneficiar curiosos, estudiosos, historiadores, ou mesmo belicistas fanáticos desenganados?

Em suma: se o caráter "preventivo" do filme tem eficiência questionável, e se a intenção informativa perde-se no esmiuçar doentio do morticínio, qual a verdadeira finalidade dessa "obra de arte"?

Exemplo de Conduta

A narrativa de "Soldado Ryan", na sua necessidade de indicar o caminho do "bem", confunde os juízos da platéia mais lúcida e mais preparada. Implacavelmente joga o espectador para o lado dos Aliados — que, em termos de atrocidade, foram tão execráveis quanto os alemães do "Eixo".

Aos americanos, concede-se o direito à crise de consciência; aos seus inimigos, a inata vilania de quem mata simplesmente por esporte. Mais uma produção "made in USA" com esse sério defeito de fábrica.

Resgate do Passado

"Ryan" completa a recente trilogia histórico-oficiosa do consagrado e multimilionário diretor norte-americano de origem judaica. Feito o balanço, com "A Lista de Schindler", pouco ou nada se acrescenta à perseguição dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial; com "Amistad", pouco ou nada se acrescenta às arbitrariedades e injustiças cometidas durante o regime escravocrata na América do Norte; e agora, com "O Resgate do Soldado Ryan", pouco ou nada se acrescenta ao Dia D e ao valor da vida durante o maior confronto mundial de que se tem memória.

Louis Menard, professor da Universidade de Nova Iorque, não perdoa, mata: "Uma ambição da arte é fazer as pessoas pensarem o que não pensavam, e o grande problema de Spielberg como cineasta é que ele jamais permite que seu público pense. Só permite que ele sinta. Spielberg não deixa nada ao acaso. Põe música por trás de tudo. Se conseguisse respeitar um pouco menos seus temas ou um pouco mais o seu público, faria melhores filmes."

Talvez não devêssemos condená-lo assim, sumariamente, pois, afinal de contas, o cinema nunca foi veículo para reflexões intrincadas a respeito da vida, da morte, do mundo e das gentes. Approposito disso — por coincidência num texto sobre "Amistad" — escreveu o sempre definitivo Gore Vidal: "Um filme, pelo fato de ser feito de imagens em movimento, é a única forma de narrativa que não consegue transmitir uma idéia de qualquer tipo."

Propagação da Culpa

Spielberg, portanto, peca por limitar o cinema a um fluxo de emoções gratuitas, vazias, tendenciosas e inquestionáveis. Suspende o raciocínio e a dúvida. Hipnotiza e incute, no seio do público mais desavisado, a conclusão que mais lhe interessa sobre uma época, um acontecimento, uma pessoa ou uma raça.

É a Sétima Arte como forma de poder.

Pois quem nega o sofrimento e a dor daqueles soldados? Quem lhes nega a opção desesperada de atirar a esmo? Quem lhes nega a vingança do companheiro que se lhes morre nos braços? Pois quem lhes nega o ódio cego ao inimigo que mata em quantidade e que permanece inabalável?

Pois qual de nós, naquele cenário, manteria um mínimo de serenidade, sem perder a cabeça e sem fazer até pior do que aqueles soldados?

Eis, na nova fase de Spielberg, o que há de condenável: a supressão da dicotomia inerente a qualquer realidade vivida pelo homo sapiens. Mesmo no reino das maiores barbaridades, justifica-se a atitude dos bons e dos maus personagens.

E mesmo no âmbito das certezas inabaláveis, Sr. Diretor, não devemos abdicar de repensar as mesmas verdades.

J. D. Borges